
Jorge de Sena comparou um dia a secular grandeza das sequóias com a risível aparência do arbusto que é o pilriteiro. Digo Sena e sinto-me um pilriteiro. Ao daninho arbusto chamam-lhe também cambrulheiro, escalheiro, estrapoeiro. Nomes nada motivadores. Na minha condição de pilriteiro ou estrapoeiro, ignoro o arbusto e ponho os olhos na sequóia.
Em 1984 ou 1985, Bénard da Costa pespegou-me com uma catrefa de caixotes com uns bons milhares de páginas dactilografadas, se alguém ainda lembra o que é uma página dactilografada. Vinham com agrafos, riscadas a lápis azul e lápis vermelho da censura. Eram os textos lidos nas sessões de cinema das 3.ªs Feiras clássicas, por personalidades da cultura portuguesa. Antes de cada filme falava um mestre.
A ordem era converter o imbróglio em livros que permitissem às gerações futuras saber como a intelectualidade dos anos 50 via o cinema. Estavam ali textos de Vitorino Nemésio, Delfim Santos, Vieira de Almeida entre outros.
Só tive olhos para a sequóia chamada Sena. Os textos dele eram um corpo literário e crítico coerente, um quadro comparativo, tão ao gosto de Sena, da relação dos filmes com o seu tempo social e político e com a literatura e o teatro, recorrendo a ousados paralelos com gigantes do passado que nem o cinema podiam adivinhar, de Caldéron a Shakespeare.
E lá fui eu, com a arrogância de pilriteiro, dizer ao Bénard o que ele queria ouvir: devíamos publicar os textos por autores e o primeiro livro tinha de ser o do pasmoso e inenarrável Sena. O Bénard levantou-me ao colo, deu-me o nihil obstat e mandou-me falar à sequóia mãe, Mécia de Sena.
Fui. Bati à porta do 939 Randolph Road, Santa Barbara, na Califórnia. A porta abriu-se e logo pus um pé na casinha japonesa, amplas janelas, sala forrada a livros e discos, onde vivera Sena.
Descobri que Mécia era um dragão no seu castelo, torrencial na conversa, conhecimento avassalador do meio literário, capaz de armar na sua cozinha americana um jantar para dez convivas, enquanto divagava da literatura ao cinema e à ópera.
Recordo com ternura, ao meu estilo pilriteiro, o pic-nic que ela e Maria de Lurdes Belchior me prepararam numa das missões espanholas que pontuam a estrada de Santa Barbara a São Francisco. Quem comeu na América um pic-nic com ovos verdes e bolinhos de bacalhau? Ora o meu amor a Sena tem razões mais inconfessáveis e eróticas. Vou confessá-las.
A 10 de Junho de 1977, Jorge de Sena discursou na Guarda. Defendeu a imagem de um Camões de amor e tolerância, um Camões que, “tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências se fosse em vida o nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou”, para glória máxima da língua que falamos.
Sena lançava palavras ao vento e ouviam-nas os meus ouvidos e os ouvidos da Antónia, que viria a ser Fonseca. E ali estávamos os dois, num apartamento da Costa da Caparica, olhos semicerrados ao mar de Junho, cada vez mais a contar os dedos de mão na mão, e a dar dez, já antevendo o poema de Sena em que, duas mãos onze dedos, há um inusitado dedo a mais.
Hoje, 47 anos de evidências e exorcismos, a Antónia e eu já podemos dizer, “Conheço o sal que resta em minhas mãos, / como nas praias o perfume fica / quando a maré desceu e se retrai”.
Levanto os olhos a este Sena. É uma sequóia: convida a sentarmo-nos, amar, ler e adormecermos encostados ao seu vasto tronco, como Mécia me quis dizer com o pic-nic nas missões espanholas de El Camino Real. É isto: ou os livros, poemas e romances, nos entram pela vida e corpo dentro ou não são sequóias.
Publicado no Jornal de Negócios
Concordo. Com o azul da foto. E com Sena ser uma Sequóia. Quanto ao pilriteiro, fui conhecê-lo e pareceu-me bem: tem folhas, frutos e flores, não lhe falta nada. Os espinhos é que. Se em modo vegetal, eu seria, com muita honra, uma erva rasteira à beira do caminho.
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Ora aí está. Tudo fica bem à beira do caminho.
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