Onde estava eu em Janeiro de 74, antes do 25 de Abril

Publicado no Diário de Notícias, como parte da série criada por Alexandra Tavares Teles com testemunhos sobre os dias que precederam o 25 de Abril de 1974

No dia 6 de Janeiro eu tinha caído mais ou menos de pára-quedas em Lisboa. Já não vinha a Portugal desde bebé – então Metrópole – há 15 anos. Vinha de Angola, onde vivera uma infância felicíssima e uma adolescência de um erotismo tropicalizante. Cheguei a Lisboa com a mesma tanga de Tarzan com que eu em África saltava de liana em liana: o pequeno saguim que eu era estranhou, está claro, o frio, desconhecido e descontente Inverno. Aterrei na Faculdade de Direito, descobrindo que, selva por selva, preferia os meus chimpanzés aos dinossauros que ali encontrei. Os dinossauros davam aulas, os gorilas estavam à porta. Abro uma excepção, havia dois jovens professores, os únicos simpáticos saguins do meu género, que valiam o esforço de sair da cama e dar corda aos sapatinhos da Padre Francisco Álvares – ao lado do Jardim Zoológico, está claro – até à Alameda Universitária. Eram os jovens Marcelo e Jorge, um viria a ser o mais fotografado Presidente do mundo, o outro um desconcertante constitucionalista. O futuro mostraria que eram, aliás, ainda melhores do que eu pensava.

Lisboa, nesse Janeiro de 1974, era uma cidade em que se ouvia, quando a brigada reumática deixava, o Venham Mais Cinco de José Afonso (não me admira que o MFA o tenha escolhido para segunda senha da Revolução, que só não foi porque a Censura o tinha proibido entretanto, tendo o Grândola sido segunda escolha), mas também o Chico e Caetano da Morena de Olhos de Água, e eu, ainda a querer ser desviante e iconoclasta, me inclinava para o Grand Wazoo, de Frank Zappa, e para a intragabilidade do Variations IV, de John Cage (um tipo, aos 20 anos, ou é a rasgar ou então que se lixe lá a vida!). Todos comprados na Opinião.

De dia, a cidade era cinzenta, muito mais vetusta do que o meu professor de Latim, no Salvador Correia, em Luanda. Mas à noite, ó que transformação, da Alga ao Porão da Nau, a cidade era um “lobisomem em Londres”, que nos fazia esquecer os confrontos na faculdade entre o pré-MRPP, que dava pelo flamejante mote Ousar Lutar, Ousar Vencer, e o já escarrado PCP que o sorumbático lema Unidos Venceremos  tão bem revelava.

A 6 de Janeiro, ou talvez uns dias antes, recebi, dentro de um envelope escrito com letra de 3.ª classe, o meu primeiro Avante!  clandestino, em papel-bíblia. O regime iria estremecer, um mês depois, com O Portugal e o Futuro, de Spínola, mas estrebuchou e não caiu com o falhado Golpe das Caldas, a 16 de Março. Pensando que a ditadura era de ferro, meti-me, nesse mês de Março, num avião e voltei a Angola. Ia, e não sabia, para a Independência. Eis como o 25 de Abril mudou a minha vida, coisa que a 6 de Janeiro jamais adivinharia. Jamé!

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