
O remorso mordia-lhe a grandes dentadas a alma. A cada noite de 24 de Dezembro o cavaleiro Pierre Picot de Limoëlan fechava o seu ajoelhado corpo francês na capelinha do mosteiro da Visitação, na cidade americana de Georgetown, e rezava toda a noite. Martirizava-o a memória do atentado contra Napoleão Bonaparte, a 24 de Dezembro de 1800.
Napoleão jantara cedo. Josefina queria ir à Ópera, assistir a um oratório de Haydn. A mesma Ópera onde, em Outubro, quatro conspiradores jacobinos, que planeavam matá-lo, tinham sido presos. O futuro Imperador, então primeiro cônsul, essa função a que aspiram Montenegro e Pedro Nuno Santos, partiu antes de Josefina, num coche, acompanhado de guarda a cavalo. O cocheiro não estaria certamente bêbado, mas já anteciparia na sua alegre cabeça a Fórmula Um dos séculos a vir, e deu-lhe para ultrapassar os cavalos da guarda.
E agora vejam, a França da sangrenta Revolução de liberdade, igualdade e fraternidade ainda não está pacificada. Um movimento monárquico, os Chouans, continua de erectas armas em brasa: os bretões não são fáceis de sossegar. Limoëlan, a quem a Revolução guilhotinou o pai, é escolhido para eliminar Napoleão. Chega a Paris com dois companheiros, Pierre Saint-Régeant e o veterano François-Joseph Carbon. Compram uma carroça e uma égua. Na carroça, montam um dispositivo que ficou conhecido por “máquina infernal”: um enorme barril que prendem com cintas metálicas, enchendo-o de pólvora, balas e metais. Escolhem a rua de Saint-Nicaise, esquina com a Saint Honoré, de que Carbon se lembra por ter ali enfrentado as tropas de Napoleão. Uma canhonada atingiu-o, deixando-o disforme para o resto da vida: o único espelho em que se quer voltar a ver é o cadáver de Napoleão.
O dispositivo está montado. Limoëlan precisa, agora, que alguém fique a segurar as rédeas da égua. Vê uma miúda, Marianne, de uns 14 anitos. Convence-a, com umas moedas traidoras. Carbon e Saint-Régeant acenderão a mecha ao sinal de Limoëlan.
E eis que, em vez dos cavalos da escolta, Limoëlan vê uma carruagem dar a curva a toda brida. Hesita. Será Napoleão? Já a carruagem passou e agora sim, vem a escolta. Limoëlan dá sinal. Os celerados monárquicos acendem a mecha, e fogem, deixando lá a desgraçada Marianne. Mas já é tarde: a bomba explode como se fosse o fim do mundo, ainda parte vidros na carruagem do imperador e na de Josefina, mas o poder sai indemne. De Marianne, que Limoëlan enganou, o corpo desfez-se: um braço foi parar à cornija de um prédio vizinho. Há nove ou vinte mortos inocentes, as contabilidades dividem-se.
Napoleão não parou. Embalado por um suave Bordeaux (ou seria o Beaujolais nouveau?), acordou de um sonho com a explosão, imaginando-se a ser bombardeado pelos austríacos na batalha de Tagliamento. O grande e delirante Sigmund Freud haveria de analisar, com austríaca pertinência, esse pesadelo imperial. Na Ópera, Napoleão é ovacionado. Não parou, nem voltou atrás para cuidar de mortos e feridos. Guilhotinará os culpados, aproveitando para trinchar o pescoço a muitos adversários inocentes.
Só Limoëlan consegue fugir para a América. Torna-se padre e a imagem de Marianne assombra-o. De joelhos cravados no chão, cabeça curva, podemos ainda ouvi-lo: “Por minha culpa, por minha tão grande culpa!” Bem pode, por séculos e séculos, rogar à Virgem, a todos os santos e a vós irmãos, que tendes a paciência de me ler. Limoëlan morreu aos 58 anos, em Charleston, a cidade que daria, um século depois, nome a uma dança frenética, a dança que Marianne nunca dançou.
Publicado no Jornal de Negócios
Com que prazer o leio e aprendo tanto, meu Amigo.
Muito obrigada.
Carminda Canha
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