
As mulheres salvam. Começo com um pedido: ponham nos vossos olhos os olhos de John Le Carré e olhem para Anastassia Douroff. Vejam-na a caminhar pelas ruas de Moscovo, o grave peso eslavo, a saia tão redonda. Concordem comigo: não é mais do que uma anafada dona de casa russa. Mesmo depois de entrar na Embaixada de França, o que é uma surpresa, fica a dúvida: afinal, cabe-lhe dirigir a intendência. É, confirma-se, a dona de casa da Embaixada.
Exilou-a, menina e moça, de casa de seus pais, esse sósia de Bernardim chamado Revolução de Outubro. De alma russa, em Paris, era cristã ortodoxa, mas também católica para poder comungar todos os dias, consagrada na comunidade de São Francisco Xavier. Oh, que maçada, dizem-me os meus leitores, e eu peço que não desistam: cheirem bem Anastassia – Assia, para os amigos – e percebam que o aroma é de mistério.
Assia é uma dessas figuras das sombras que Aleksandr Soljenitsin incensa e canta no seu “Os Invisíveis”. E vejam, Assia está agora a falar com outra fraca figura, Isabelle Esmein. Frágil, tímida, não chega a ser bonita, a não ser quando põe o sorriso cândido, de ser humano doce e bom, como pôs para Khruschev, nos anos de degelo em que a nomenklatura comunista permitiu a Soljenitsin publicar “Um Dia na Vida de Ivan Dessinovitch”, livro que o empurraria para o Prémio Nobel.
Ora, quem manda agora na União Soviética já não é o caótico Khruschev, mas um buldogue, Leónidas Brejnev. Voltou a ladrar-se estalinisticamente e Soljenitsin sente as dentadas. O pidesco KGB já lhe assaltou de novo a casa e levou-lhe cada folha escrita: e não por amor à literatura. Agora, Soljé, como Assia lhe chama, esconde o que escreve e passa o que pode a microfilmes. Como passá-los para a liberdade?
Soljenitsin descobre uma alma gémea num padre, Alexandre Men, que tenta incendiar de espiritualidade o desespero russo do fim dos anos 60. O padre faz a ponte com Assia. E é numa caixa de chocolates, levada por um funcionário da Embaixada de França, que sai de Moscovo, o “14 de Agosto”, primeiro dos quatro tomos da “Roda Vermelha”. Foram as mãos de dona de casa eslava de Assia que montaram essa caixa de chocolates.
Agora, Soljenitsin quer pôr a salvo o mais fiel e veemente testemunho do que são os campos de concentração comunistas. O livro chama-se “O Arquipélago do Gulag” e é monumental: quantas caixas de chocolate serão precisas?
As mulheres salvam! Assia e Isabelle, numa silenciosa cumplicidade, conseguem receber os microfilmes e, sem que ninguém saiba – qual Embaixador, quais adidos! – preparam a fuga do livro que disputará a “Vida e Destino”, de Vassili Grossman, o ceptro de melhor livro russo do século XX. Isabelle, a coberto do passaporte diplomático, escondeu num saco, que a polícia soviética não podia espiolhar, os microfilmes. Passou e, em Orly, entregou o saco a Nikita Struve, que imprime o livro em russo, numa tipografia de Paris, dizendo aos tipógrafos, ligados ao Partido Comunista francês em campanha contra Soljenitsin, que era uma obra de matemática. Já o KGB tinha apanhado e torturado outra das “invisíveis”, a dactilógrafa do escritor, que não resistiu e lhes entregou o duplicado do “Arquipélago”, enforcando-se a seguir.
Isabelle, como Assia, era catolicíssima, ligada ao militante e missionário círculo São João Baptista. Morreu sem dizer uma palavra sobre esta missão, nem Soljenitsin sabia quem era, a não ser que uma “viajante” contrabandeara o “Arquipélago”. E atrevam-se lá a dizer que na beatificação e na virtude não palpita o germe da aventura!
Publicado no Jornal de Negócios
Fantástico .
Li esse Livro em pleno Gonçalvismo. Exibia-o perante os velhos e os recentes convertidos ao comunismo. Em suma era fascista. Tanto, como havia sido comunista, antes de 25 de Abril de 1974, quando comprava na Europa América os LPs dos Hinos Revolucionários Russos .
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