Cada um ponha os ovos de que precisa

Mais vale um Lenine na mão do que dois a fugir

A festa da passagem de ano, litros de champanhe e toneladas de passas comidas ao ritmo de badaladas, é o inusitado ritual em que juramos amor eterno à felicidade, como se a Criação do Mundo, assim, maiúscula, começasse às zero horinhas do dia 1 de Janeiro.

O 1.º de Janeiro é sempre um dia “inaugural e limpo”, o que me faz lembrar que 2024 será o ano em que festejamos os 50 anos do 25 de Abril. Há quem diga, com voz de militante seminarista, que “comemoramos”, mas eu corrijo: “comemoramos” é conversa da senhora sua tia, os 50 anos do 25 de Abril têm de ser festejados. O 25 de Abril foi uma das mais impressionantes algazarras de liberdade, loucura, e inocente destrambelhamento colectivo que o modesto povo português já viveu.

Começo por um episódio que nem todos conhecem. Havia duas senhas musicais para os militares avançarem com a revolução. A primeira era o “Depois do Adeus”, a segunda foi o “Grândola”. Mas não era para ser. E agora vejam já os deuses, com o seu arrebicado sentido de humor, a meterem o bedelho nesta coisa dos humanos. Os militares tinham escolhido, do Zeca, o “Venham Mais Cinco”, disco recente. E pimbas, a censura proíbe a canção! Obrigado, censura: devemos-te o ter hoje o “Grândola”, que é ainda “mai lindo”, como símbolo da queda da funesta ditadura de 48 anos.

Há mais acasos. O “Grândola” devia ser emitido pela Rádio Renascença às 00:20. Ora, às 00:05, houve um corte de energia, só recuperado 5 minutos depois. Uff! E, em cima da hora, um locutor, a leste do que se passava, trocou o alinhamento e avançou com um bloco publicitário, pondo em causa a saída da senha. Foi o Manuel Tomás, que conheci na SIC, feito com a Revolução, que conseguiu travar a publicidade e repor o alinhamento para os militares ouvirem, no minuto certo, a canção em que o povo mais ordena.

E agora venham para a rua. O pessoal traz cravos no bolso, na lapela, lambe e come cravos. Já é 1.º de Maio e deu-se a maior romaria a que a Europa assistiu. Era um país de mel, caía-se nos braços uns dos outros. Ouçam só o que se dizia, na rua: “É feio, é feio, ficar no passeio.”

Num desregramento carnavalesco ocupam-se casas, fábricas, herdades. “Ocupem, primeiro; depois, logo se faz uma lei para a ocupação”, esclarece e sossega um militar revolucionário. Numa das herdades, na Torre Bela, um militante activista, que nunca cavou, claro, explica a um camponês que a enxada dele deve passar a ser da cooperativa. E o cavador, numa inocência desarmante, de bom povo, diz: “Amanhã, tiram-me as botas e ficam da ‘comprativa’. Ficam a ser da ‘comprativa’ e eu fico nu.”

A revolução atinge o delírio, nacionaliza-se, os quartéis parecem acampamentos hippies, e as palavras de ordem mais surrealistas inundam as ruas. Ao desvario político, a imaginação dos portugueses responde, então, com algumas das mais poéticas e livres derivas que já vi.

Leiam, leiam. “Abaixo os organismos de cúpula. Vivam os organismos de cópula” é a resposta aos querem abocanhar o poder. Aos que querem cindir o país em revolucionários e reaccionários: “Abaixo a reacção! Viva o motor a hélice.” Desarmam mesmo a questão colonial: “Nem mais um soldado para as colónias! Nem mais uma freira para o céu!”

Cante-se a salubridade mental e a irreverência que resistiu a todas os fanatismos. E não sequestrem a alegria com comemorações moralistas: ser sequestrado chateia o português. Sim, políticos, não façam do 25 de Abril a vossa galinha. Lembrem-se: “Abaixo a exploração sexual da galinha. Cada um ponha os ovos de que precisa.”

Publicado no Jornal de Negócios

4 thoughts on “Cada um ponha os ovos de que precisa”

  1. Eu, no 25 de Abril estava na Guiné, a ouvir a revolução pelo rádio com ganas de não poder estar presente de armas na mão nesse glorioso dia, há muito esperado; tem piada que conheci o Salgueiro Maia em Bissau não sonhando sequer que iria ser o herói desse dia “inteiro e limpo”.

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  2. e mai nada! Abaixo as forças fascistas e fascizantes como dizia Álvaro Cunhal por dá cá aquela palha.
    Mas eu queria mesmo essa alma límpida e pura do 25 de Abril. Essa incredulidade do povo perante Os Vês de vitória da maioria esclarecida(?) que passava em procissão de automóveis a buzinar, aquilo é o quê? Sei lá, fazemos igual, deve ser qualquer coisa da liberdade. Deve ser, VIVA A LIBERDADE! E era mesmo, ainda que nem soubéssemos bem como estar fora da jaula. Mas que havia alegria no ar e todos nos sentimos irmanados, foi verdade. Estive lá.

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