Lorca, o amor obscuro

Lá longe, na Rússia do czar, estava Dostoievski encostado ao paredão, as armas do esquadrão de fuzilamento apontadas ao seu peito. A sórdida morte, sorriso manhoso, espreitava das nuvens. Tinha, no Portugal monárquico, Camilo Castelo Branco acabado de escrever em folhetim Maria! Não Me Mates Que Sou Tua Mãe!

Eis a diferença, a grande Rússia é trágica, o pequeno Portugal é folhetinesco e anedótico. E, todavia, mesmo na tragédia há redenção: um enviado especial do czar entra no último minuto, como nos devastadores e geniais filmes mudos de D.W. Griffith, e resgata Dostoievski da morte: pena comutada num gelado exílio na Sibéria.

Vejamos, as espingardas da Falange, começara há dias a sublevação de Franco contra a República, estão apontadas ao peito – ou foi às costas? – de Federico Garcia Lorca. Haverá resgate, um salvamento hollywoodiano de último minuto?

O que fazia Lorca em Granada? De que amor obscuro – esses “oscuros amores”, que cantou em soneto – se escondia ou clandestinamente buscava? A 18 de Julho de 1936, escreve, e não sabe que escreve a sua última carta, a um jovem amante de 17 anos, que deixou em Madrid. Aconselha-o a não enfrentar o pai conservador, que saiba desmentir as “calúnias” com gentileza e, na linha da raça flamenca, seja capaz, com graça e alegria, de travar até um comboio.

Juan Ramírez de Lucas, o juvenilíssimo amante de Lorca, era uma paixão recente. E talvez a vinda a Granada do poeta fosse a antecâmara de uma fuga para o México, mas que deveria esperar pelos 18 anos do jovem. E talvez não ou pelo menos não só.

Já velho, 69 anos depois, Juan Ramirez procurou o reformado director da casa-museu de Lorca e, afirmando-se admirador do poeta, mas ocultando a intensa e tão breve paixão, quis saber se, em Granada, no fatídico Verão de 1936, Lorca lá se encontrara com outro jovem, Eduardo Rodriguez Valdevieso. O director contou-lhe tudo, de como o poeta e o jovem bancário eram amantes há alguns anos e das cartas que o museu guardava.

Foi esse o Lorca que os falangistas foram buscar, de assalto, a casa de Luis Rosales, um direitista conservador que o acolhera e protegia. A lenda fala de tortura, mas a investigação histórica baseada nos relatos de quem o viu, fala de um Lorca cativo, absorto, agarrado obsessivamente ao seu cigarro, sem interrogatórios, por não pertencer a nenhum partido ou sindicato.

E há outra lenda, porventura indestrinçável. Lorca e Primo de Rivera, o ideólogo e fundador da fascista Falange, teriam sido amigos. Encontravam-se em Madrid a cada sexta-feira. Para jantar? Ou, como Lorca terá contado a Gabriel Celaya, percorriam Madrid, conversando num táxi de cortinas corridas para não porem em causa a reputação política de cada um? A especulação erótica é um delírio, mas o interesse comum pela poesia – tanto que Rivera dizia que Lorca seria o poeta da Falange – pode ter forjado essa amizade improbabilíssima. O táxi de cortinas corridas é, certamente, uma transfiguração do imaginário lorquiano.

Seja como for, são agora 4:45 da madrugada do dia 18 de Agosto de 1936 e, no ignorado caminho de Víznar a Alfacar, as armas dos falangistas estão apontadas ao peito de Lorca. A quem apontam? A um inimigo político ou a um poeta que sabem ser maricón e por isso querem matar? E será verdade que, numa ironia torpe, o mandaram pôr de costas? E quem deu, cego por que ódio, a ordem da execução criminosa?

No ano seguinte, no jornal fascista Unidad, Luis Hurtado, um falangista, escrevia: “À Espanha Imperial, assassinaram lhe o seu melhor poeta.”

Publicado no Jornal de Negócios

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