
Camilo era, ó se era, uma peça. Já vos falo da sua transumância amorosa com uma freira. Mas agora, assentem o queixo no vosso punho fechado, sentem-se como O Pensador de Rodin, e reflictam: o que se pode esperar de um miúdo órfão e filho de mãe incógnita! Parece conversa de folhetim e coisa de faca e alguidar? Já vos dou a faca e o alguidar.
Camilo Castelo Branco, nascido de descontroladas aventuras amorosas paternas, foi perfilhado pelo pai aristocrata, como filho de mãe incógnita, tendo a omissa mãe morrido tinha Camilo dois aninhos. O pai não demorou muito a ir ter com essa mãe de uma ou várias noites arfantes e Camilo achou-se órfão, mas não coitadinho, aos 9 anos. Criou-o uma tia e a irmã mais velha. Educou-o um padre: muito latim, parlez-vous français e o incêndio erótico que já se vai ver.
Tinha só uns exaltados 16 anos e casou-se com Joaquina Pereira da França, uma menina de 14, filha de lavradores, ali ao lado de Vila Real, lá para Trás-os-Montes. O arrebatamento durou o que tinha de durar e o tufão amoroso que era Camilo, vê-se com uma filha a cargo. Apaixonou-se por uma prima, Patrícia, órfã de mãe, com vocação para canto e piano, que ainda mal chegara à candura de umas 20 doces primaveras. Fugiu com ela para o Porto, mas a mancebia não durou muito, que a mando do pai da moça, que por sua vez era amante da tia de Camilo, acabaram presos na Cadeia da Relação.
Fosse talvez por dormirem juntos, Patricia engravidou, ou seja, Camilo, aos 23 anos, tinha duas filhas. Isto é, uma filha, que a primeira lhe morre, exactamente um ano depois da morte da infausta e abandonada Joaquina, a primeira mulher. Da segunda filha há de cuidar uma freira, sua terceira amante, a quem Camilo recitava versos, ela do lado de lá das grades do convento, grades insuficientes para travar a pujança camiliana.
Pego agora na faca, peguem, por favor, no alguidar. Com esta vida, a luxúria e fuga cheias de andamento, Camilo não tinha um tostão para mandar cantar nem um ceguinho. Acontece, então, em Lisboa, o mais horríssono dos crimes: uma filha mata uma mãe. Não sei quantas facadas, enquanto a pobre gritava “Maria! Não me mates que sou tua mãe”, seguidas de esquartejamento do corpo, espalhando a vil criatura os pedaços da mãe por diferentes lugares de Lisboa. A polícia vem a casa da filha, encontra indícios, descobre uma cabeça enterrada, está a filha sôfrega a comer melancia, e diz “Sim, essa é a cabeça de minha mãe”.
Camilo escreve de rajada, no Porto, para o jornal Eco Popular, um folheto de cordel, o célebre “Maria! Não me mates que sou tua mãe”. Bestseller imediato, com reedições e trinta por uma linha. Camilo, que vivia de redigir crónicas desembestadas em jornais, e ainda não escrevera romances, tem aqui a sua estreia anónima: não assinou o folheto de cordel. E, no entanto, estava ali, em embrião, tudo o que, de amores de perdição e de macabro, Camilo viria a publicar.
Ah, e o gozo que lhe deu receber em cobre a receita desse folheto, de que, espremido, sairia sangue. Os bolsos cheios, as moedas a tilintar sobre a mesa, como ele mesmo contou a um amigo e biógrafo. E agora, deixem-me gostar ainda mais de Camilo. Sob pseudónimo, escreveu – pagavam-lhe para isso – uma crónica a desancar o seu próprio folheto de cordel. Dizia: “Lá vai uma chicotada nestes súcios que racham o público com ‘Maria! Não me mates que sou tua mãe’… A tal Maria José que matou a mãe tem dado bom dinheiro.” Ora aí está o Camilo intelectual a desancar no Camilo bestseller, os bolsos cheios de bom dinheiro.
Publicado no Jornal de Negócios