
Bem sei que já estamos em Outubro, a derrapar para Novembro, mas foi Setembro e são estes versos do brasileiríssimo Carlos Drummond de Andrade que acicatam a minha lamentável cabecinha: “Era manhã de Setembro e ela me beijava o membro. Aviões e nuvens passavam, coros negros rebramiam, ela me beijava o membro.”
Eis o beijo que faz explodir em fogo de artificio o imaginário masculino – mesmo o mais empedernido e tóxico representante da masculinidade. Sim, mesmo um ultra cis, hiper hétero tem vontade de fechar os olhos e entoar com voz lírica e num requebro de mariquíssima doçura o verso de Drummond: “e ela me beijava o membro.” É como ter asas e voar.
Num filme, “Betty Blue, 37,2º le matin”, Béatrice Dalle, talvez a boca mais sensual do mundo nos anos 80, agracia o amado com essa dádiva divina. Béatrice tinha 21 anos e era na vida o contrário do vulcão de sexualidade e aquecimento global que exibe no ecrã: ingénua e pura. E é assim, pura e rebelde, que beija o que beija.
Ora, uma coisa é a derretida poesia que lambe o ecrã quando vemos o filme. Outra coisa é filmar-se a cena. É preciso filmar de vários ângulos. Havia, conta a actriz, necessidade de grandes planos (esses mesmo, em que a câmara está em cima do rosto, dos lábios da actriz e daquela coisa tem-te não caias do actor) e esses momentos, que os versos de Drummond elidem por deles não precisarem, foram para Béatrice momentos e pormenores angustiantes, com electricistas, cameraman, assistentes a borboletear à volta.
E agora vejam, na estreia do filme, mesmo atrás dos 21 anos de Béatrice está a mãe dela, mais católica ainda do que a católica actriz. Quando a imensa boca de Dalle – boca «carnassière» diziam em França, termo que eu diria ficar mais bem traduzido por «carnívora» do que por «carniceira» – vem delicada beijar o indeciso apêndice que, como a Alice de Carroll, ainda hesita entre o “cresço” ou “encolho”, Béatrice jura que ficou pequenina e invisível na cadeira. Dos beijos pode ser, ensina-nos Drummond, o mais casto, mas ter a mãe na fila de trás é abater a tiro o entusiasmo e êxtase do ou da mais devota praticante.
E autorizem-me, por esta vez, uma digressão brejeira. Estava o Professor Salazar, de quem tão pouco se sabe se crescia ou encolhia o recolhido apêndice, no conforto de São Bento, a senhora Dona Maria aos pés da cama com a botija de água quente, quando a lendária voz de Fernando Pessa vibrava, cálida, na esplêndida sala do cinema Tivoli, na Avenida da Liberdade. Fazia a locução da visita da falecida rainha Isabel, comentando as imagens, em particular o harmonioso conjunto casaco, blusa, saia, dele destacando, e cito, “o belíssimo broche todo feito à mão”! O ponto de exclamação é meu e roubei-o à anónima voz que, no escuro da sala, numa revolta vernácula contra o preciosismo lexical salazarista, se insurgiu contestando: “À mão?!”
E o que queria mesmo dizer é que a poesia nunca foi coisa delicada e para delicados e ainda menos para delicadinhos. Drummond canta com lírica e sublime indelicadeza o beijo mais beijo de todos os beijos. E indelicadeza só o é para quem já não tem a inocência de acreditar que com castidade se abrem coxas ou que mão apalpante deslize pura pela perna que prontamente responde.
Noutro poema, o português infausto que foi Jorge de Sena, tomado por uma afrodisíaca pulsão pedagógica, explica-nos o que é mesmo um beijo: “É língua que na boca se agitando, irá de um corpo inteiro descobrir o gosto, e sobretudo o que se oculta em sombras e nos recantos em cabelos vive.” Beijem.
Publicado no Jornal de Negócios