Dormir com Annemarie

Poucos, creio, dormiram já com Annemarie! Mas quem já dormiu com Annemarie, deitado ao lado do seu corpo subversivo, sabe o que é um amante sentir-se invencível. Annemarie é francesa, de Lyon, clandestina em Bruxelas, nesse tempo em que se podia ser clandestino até no próprio país.

Eu trago Annemarie comigo desde 1974, memória do meu tempo clandestino no Lobito, quando tive problemas com a tropa portuguesa, e deambulava pelo porto, o maior da costa ocidental de África, à espera, porventura, de poder enfiar-me sub-repticiamente num barco que me levasse às exóticas cidades da Europa. Deambulava e bebia cervejas pouco geladas nos chungosos bares de prostitutas, que os embarcadiços já sem sonhos vinham mal frequentar. Mas o acaso, a que alguns chamam destino, acabou por levar-me até à porta do Liceu Almirante Lopes Alves, onde acabei a dar aulas de literatura portuguesa e angolana, a angolana por uns canhenhos que a professora Irene Guerra Marques concebeu, sem saber que um dia seríamos editor, eu, e co-autora com o Cassé, ela, da mais bela “Antologia da Poesia Angolana” que já se fez, “Entre a Lua, o Caos e o Silêncio, a Flor”, de seu nome.  

Foi no Lobito, onde nunca foi, que conheci Annemarie, bem longe da clandestina Bruxelas. Apareceu-me inteira, vestida e nua, num livro de Herberto, “Os Passos em Volta”. Num conto a que o título “Polícia” empresta a iminência do perigo, Annemarie senta a sua febril e subversiva solidão ao lado do ilegal narrador da trama que a estrangeira imaginação de Herberto concebeu, talvez em espelho de si mesmo.

Nas cinco páginas, da 29 à 33 da minha edição, em que arrebata Herberto, Annemarie é uma das mais belas mulheres que a literatura portuguesa nos oferece. Tão poética como a Léah do conto do mesmo nome de José Rodrigues Miguéis, vem, ao contrário da inocente Léah, carregada de experiência. O corpo, a pele alva e o seio oferecido de Léah não têm pecado, como se nunca tivéssemos saído do Paraíso. Annemarie já saboreou todos os frutos da árvore do conhecimento. Abandonou “um filho de dois anos aos cuidados da sogra” e não sabe se está vivo ou morto o marido que combate na Argélia.

Ao narrador português, perseguido pela polícia, ilegal em Bruxelas, manhosamente protegido por um intermediário ligado ao partido comunista belga, Annemarie oferece o “calor inconcebível” da sua solidão. Furtivos, escondem-se da polícia nas ruas mais escusas, e acabarão a amar-se “até de manhã”, sobre um cobertor do quarto do narrador de que nunca saberemos o nome: lá fora, a persistente chuva belga: “Sentíamos a chuva sobre a terra inteira.”

É esta Annemarie que trago comigo num livro, “Passos em Volta”, publicado por Herberto na Portugália Editora, em 1963. O meu exemplar, quase a desfazer-se, tem o carimbo do Liceu do Lobito, com o número 5064 apontado a esferográfica. Tinha-o em casa quando os sul-africanos entraram na cidade e fugi, a um dia da independência de Angola, para o Sumbe. De vez quando volto ao livro, só para ver essa Annemarie despir-se no desesperado calor humano do quarto que, breve nota prosaica, o ilegal narrador não pagava à senhoria.   O que terá feito Annemarie depois dessa noite de amor num conto português? Terá sido apanhada e presa pela polícia? Voltou ao filho de dois anos? O marido, que combatia na Argélia, terá desertado? Sobretudo, não me digam que já morreu: Annemarie continuará sempre a beber cerveja na irremediável solidão de quem é clandestino nas perdidas horas frias em que o único som é a dolorosa música da chuva.

Publicado no Jornal de Negócios

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