A solidão em passo de corrida

Quem, mesmo se fosse na Quinta Avenida, não desataria a correr atrás de Greta Garbo? Liv Ullmann correu. E recordo, como se fosse preciso, que Liv é a actriz norueguesa que se fundiu, na arte e na vida, com o sueco Ingmar Bergman.

Aliás, a rua, e não só a Quinta Avenida, tem um sortilégio indelével na vida dessa norueguesa de beleza metafísica. Liv vinha na rua, na gélida Estocolmo, com uma amiga de recente data, outra actriz, a sueca Bibi Andersson, que trabalhara, amara e vivera com Bergman, quando tropeçaram em quem? Fatal como o destino, no próprio Ingmar pois claro! Já a história de amor com Bibi tinha acabado – ou andaria adormecida – mas mal as viu, Bergman sentiu a bela amizade delas e, ali mesmo, decidiu que queria imiscuir-se, deitar-se, aninhar-se na amizade daquelas duas mulheres. Olhou para Ullmann e disse-lhe: “Quero que faça um filme comigo. Aceita?”

Nasceu, assim, “Persona”, o mais escandalosamente erótico dos filmes, de uma sexualidade seminal e amoral. Uma intensíssima Liv Ullmann, uma actriz sufocada por um trauma, atravessa em silêncio, esfíngica, todo o filme: Bergman ofereceu a Ullmann, logo para a destrunfa, o silêncio de Deus. Ao seu lado, Bibi, a sua enfermeira no filme, fala sem parar, deslargando-se em monólogos perturbadores sobre o aborto, o horror, o sexo, a orgia, o mais escuso e escuro da identidade humana ou, se se quiser, da identidade feminina.

E, uma vez que não sou um daqueles rapazes que escreve no “Público” sobre cinema, não digo mais sobre “Persona”, a não ser que o vejam para perceberem como se pode fazer do “enigma” (seja lá o que o “enigma” for) o mais belo dos filmes.

Fazendo curta uma história tão bonita como longa, confirmo que, tal como acontecera com as suas anteriores protagonistas, Harriet Andersson e Bibi Andersson, Ullmann e Bergman acabaram amantes: nunca se casaram, mas viveram juntos cinco anos, desse amor tendo nascido Anna, a filha de ambos. A perfeita simbiose, e era tanta, que se em “Persona” Bergman pôs no silêncio de Ullmann as suas mais inquietantes angústias, mais tarde pedir-lhe-ia que realizasse um seu pessoalíssimo guião, “Confissões Privadas”. Liv sentiu que o texto lhe queimava as mãos. Porquê ela? Por que razão, de tão íntimo, de tão envolvido com Deus, Bergman não o realizava? E ele explicou: “Porque tu acreditas em Deus e eu não!”

Sim, esqueci-me de Greta Garbo, que deixei lá em cima, sozinha com Deus. Vejam, os americanos, loucos com Liv Ullmann, convidaram-na para Hollywood, primeiro, depois para a Broadway. Estava então Liv a interpretar, no teatro a “Anna Christie”, depois de ter já feito, de Ibsen, com delírio nova-iorquino, “A Casa de Bonecas”. Chamam-lhe “a nova Garbo”. A caminhar pela Quinta Avenida, Liv vê e reconhece uma transeunte discreta. Era a própria Garbo. Pensa: “Aqui estamos nós, duas escandinavas, actrizes, e ambas fomos, ela no cinema, eu no teatro, a Anna Christie! Vou contar-lhe!”

Vejam, Liv já acelerou o passo, a Garbo sente que alguém se aproxima, olha e vê Liv, vira-se e acelera ainda mais. Liv pensa “ela não me viu, tenho de dar ainda mais à perna”. Dá. A Garbo, ameaçada, começa a correr, Liv corre também. Em plena Quinta Avenida, na prodigiosa Nova Iorque, há uma lenda sueca a correr, e uma bergmaniana mulher norueguesa esfalfa-se no seu encalço. A Garbo entra pelo Central Park dentro e Liv pára. Uma chispa bergmaniana atravessou a cabeça de Liv. Vai ali, em corrida pelo Central Park, a inenarrável e pasmosa solidão da Garbo: não tem o direito de a invadir.

Publicado no Jornal de Negócios

O «meu» Houellebecq

Terá sido a palavra «pornografia» que me fez correr? Não sei bem como, mas consegui que Houellebecq me cedesse os direitos deste seu confessional Alguns Meses na Minha Vida. Sim, Houellebecq fala de pornografia, de como se filma: «As únicas actividades que podem ser de facto filmáveis são a masturbação e a felação. Isso é muito bom, mas está longe de ser tudo o que se deseja.»

Confesso eu também: o meu desejo por este livro vem da candura, inocência e franqueza com que o autor o escreve. Michel e a sua mulher fizeram, com uma jovem holandesa, «desejosa de foder um dos seus autores favoritos», um filme pornográfico. O autor queria que desse trio se soltasse uma «tripla corrente de empatia simultânea» que os levasse ao gozo físico extremo. Mas o filme descambou: o que podia correr mal correu muito mal, e tudo acabou em tribunal.

Este é o livro de um episódio sórdido e doloroso que a prosa e as ideias de Houellebecq resgatam, lavando o sexo de toda a culpa e descobrindo na pornografia dignidade e inocência.

Este é um livro sobre a beleza: de como Houellebecq prefere a pornografia, que consiga ser expressão sincera e honesta do desejo – do desejo pelo corpo de outros, do desejo de exibir o próprio corpo, do orgulho no sexo –, a Picasso e a Sade, que elege como símbolos da fealdade.

Queridos amigos, queridas amigas, não basta este «amuse-bouche» para correrem, como eu, a lê-lo? Então sim, sempre vos digo que o islamismo, a tensão islâmica, esse rumor subterrâneo que faz tremer a França é, ao lado da centralíssima cama, o segundo tópico de Alguns Meses na Minha Vida.

É o «meu» Houellebecq. Um pequeno Houellebecq. Será o melhor Houellebecq?

Manuel S. Fonseca, editor

Em jeito de posfácio, um excerto da obra: «Na posição missionária, injustamente depreciada, é perfeitamente possível ao homem, enquanto penetra a mulher, acar…»

Pois é, pois é, têm mesmo de ler! Chega às livrarias a 10 de Outubro. Em pré-venda aqui: https://www.guerraepaz.pt/produto/alguns-meses-da-minha-vida/

Dormir com Annemarie

Poucos, creio, dormiram já com Annemarie! Mas quem já dormiu com Annemarie, deitado ao lado do seu corpo subversivo, sabe o que é um amante sentir-se invencível. Annemarie é francesa, de Lyon, clandestina em Bruxelas, nesse tempo em que se podia ser clandestino até no próprio país.

Eu trago Annemarie comigo desde 1974, memória do meu tempo clandestino no Lobito, quando tive problemas com a tropa portuguesa, e deambulava pelo porto, o maior da costa ocidental de África, à espera, porventura, de poder enfiar-me sub-repticiamente num barco que me levasse às exóticas cidades da Europa. Deambulava e bebia cervejas pouco geladas nos chungosos bares de prostitutas, que os embarcadiços já sem sonhos vinham mal frequentar. Mas o acaso, a que alguns chamam destino, acabou por levar-me até à porta do Liceu Almirante Lopes Alves, onde acabei a dar aulas de literatura portuguesa e angolana, a angolana por uns canhenhos que a professora Irene Guerra Marques concebeu, sem saber que um dia seríamos editor, eu, e co-autora com o Cassé, ela, da mais bela “Antologia da Poesia Angolana” que já se fez, “Entre a Lua, o Caos e o Silêncio, a Flor”, de seu nome.  

Foi no Lobito, onde nunca foi, que conheci Annemarie, bem longe da clandestina Bruxelas. Apareceu-me inteira, vestida e nua, num livro de Herberto, “Os Passos em Volta”. Num conto a que o título “Polícia” empresta a iminência do perigo, Annemarie senta a sua febril e subversiva solidão ao lado do ilegal narrador da trama que a estrangeira imaginação de Herberto concebeu, talvez em espelho de si mesmo.

Nas cinco páginas, da 29 à 33 da minha edição, em que arrebata Herberto, Annemarie é uma das mais belas mulheres que a literatura portuguesa nos oferece. Tão poética como a Léah do conto do mesmo nome de José Rodrigues Miguéis, vem, ao contrário da inocente Léah, carregada de experiência. O corpo, a pele alva e o seio oferecido de Léah não têm pecado, como se nunca tivéssemos saído do Paraíso. Annemarie já saboreou todos os frutos da árvore do conhecimento. Abandonou “um filho de dois anos aos cuidados da sogra” e não sabe se está vivo ou morto o marido que combate na Argélia.

Ao narrador português, perseguido pela polícia, ilegal em Bruxelas, manhosamente protegido por um intermediário ligado ao partido comunista belga, Annemarie oferece o “calor inconcebível” da sua solidão. Furtivos, escondem-se da polícia nas ruas mais escusas, e acabarão a amar-se “até de manhã”, sobre um cobertor do quarto do narrador de que nunca saberemos o nome: lá fora, a persistente chuva belga: “Sentíamos a chuva sobre a terra inteira.”

É esta Annemarie que trago comigo num livro, “Passos em Volta”, publicado por Herberto na Portugália Editora, em 1963. O meu exemplar, quase a desfazer-se, tem o carimbo do Liceu do Lobito, com o número 5064 apontado a esferográfica. Tinha-o em casa quando os sul-africanos entraram na cidade e fugi, a um dia da independência de Angola, para o Sumbe. De vez quando volto ao livro, só para ver essa Annemarie despir-se no desesperado calor humano do quarto que, breve nota prosaica, o ilegal narrador não pagava à senhoria.   O que terá feito Annemarie depois dessa noite de amor num conto português? Terá sido apanhada e presa pela polícia? Voltou ao filho de dois anos? O marido, que combatia na Argélia, terá desertado? Sobretudo, não me digam que já morreu: Annemarie continuará sempre a beber cerveja na irremediável solidão de quem é clandestino nas perdidas horas frias em que o único som é a dolorosa música da chuva.

Publicado no Jornal de Negócios

Noite, tarde ou manhã de amor

Entre dois Kennedys

Juro, não foi a Marilyn de ancas violentas e de louro cabelo em fogo que morreu a 4 de Agosto de 1962. Há gravações de Marilyn a fazer amor com John F. Kennedy, tão presidente então dos Estados Unidos da América como hoje Marcelo o é de Portugal. As gravações revelou-as o detective privado Fred Otash, proprietário, aliás, de uma delas. Toda a casa de Marilyn estava polvilhada de microfones. A cama também. Nessa noite, tarde ou manhã de amor com John, era a Marilyn de ancas violentas e louro cabelo em fogo que desenrolava um ciclone audível nos crispados lençóis de cambraia.

John só conheceu, aliás, essa Marilyn – nunca soube que havia outra. Viu-a, pela primeira vez em 1954, era Marilyn casada com Joe Di Maggio, o Messi ou Cristiano Ronaldo desse tempo. Foi numa festa em Los Angeles, ainda John não era presidente. Ficou de arregalados olhos de cherne postos nela. Tanto, tanto, que Di Maggio, o inseguro Di Maggio, que também só conhecia essa Marilyn fulgurante, curvilínea e vulcânica, a quis arrancar da festa, bazando dali para fora. Já em 1960, quando John se candidatou às primárias do Partido Democrático, Marilyn veio apoiá-lo. Houve um jantar, mas antes desapareceram os dois. Quando voltaram, uma eufórica Marilyn sussurrou a ouvidos amigos, que John tinha sido “very democratic” e “very penetrating”.

A Marilyn de John é a que lhe canta o “Happy Birthday… Mr. President”, é a que, noutro jantar, por debaixo da mesa, deixa que John lhe acaricie as coxas e que a mão dele vá descalça, segura, incorrigível por ali acima, na direcção da rosa dos ventos até tocar numa certa delicadeza húmida e estremecida. Marilyn viera sem cuequinhas, uma tanga que fosse, e, nas palavras dela, que eu componho à minha maneira, “ele tocou e recuou assustado, a cara vermelhíssima”.

Foi com esta Marilyn que dormiu uma estimável lista de homens. Também o cunhado de John, o actor Peter Lawford, que foi quem lhe a apresentou, e mesmo o irmão de John, Bob Kennedy. Todos amavam Marilyn e era o que lhe juravam na corte íntima à sua volta. Ela dizia o contrário: “Não, não me amam todos. Os únicos que me amam são os gajos que se sentam a ver-me no cinema e a bater uma.”

Mafia, FBI, a própria Marilyn, todos inundaram a casa dela de escutas. E John, o presidente, teve de fugir de Marilyn, como já acontecera ao seu dedo impertinente. Deixou de lhe atender o telefone, deixou sem respostas bilhetes e cartas. Mandou o irmão, Bob, explicar-lhe o inexplicável, o fim do recreio. E Bob, que já dormira com a mesma Marilyn que John, descobriu a outra Marilyn: a Marilyn que o cineasta Elia Kazan encontrou um dia em lágrimas, num estúdio, logo ficando amantes, a mesmo Marilyn que o escritor Arthur Miller, tendo casado com a girândola de estrelas e cometas, acabou por descobrir em casa, a sofrida, sonhadora, íntima Marilyn.

Bob viu e deixou Marilyn transferir para ele o que, na verdade, ela teria querido dar ao Mr. President. Uma tremenda nuvem de afecto, toda em pétalas, de uma pureza nocturna. E Bob, batido pela empatia e compaixão, tombou apaixonadíssimo pelo outro lado da actriz, pela outra Marilyn. Vinha vê-la e beijavam-se como miúdos de liceu, escondidos, exaltados, o corpo todo a tremer. E Marilyn acreditava que esse homem, casado e de família católica, com sete filhos, se ia divorciar e casar com ela. Foi essa Marilyn que, ao descobrir que voltaria à implacável solidão, desligou os tubos quentes do coração, e se deixou morrer. A de ancas violentas era só um holograma da Marilyn autêntica.

Publicado no Jornal de Negócios

A amizade (masculina)

Estes são os gangsters de Coppola

Ninguém percebe nada de amizade masculina, a começar pelos próprios homens. A amizade masculina é uma bagagem que atrapalha qualquer gajo. Como na história do caçador furtivo que traz aos ombros o veado que acabou de abater e lhe aparece o fiscal de caça. O homem nega: “A caçar? Eu? Jamais.” O fiscal aponta para o veado, o caçador dá um salto, surpreendido e assustado, e lança o veado ao chão com um grito, “Ui, raio do bicho!”

Já os mafiosos não têm medo da amizade. No “Cotton Club”, de Francis Coppola, há dois gangsters, o gordinho e afável Owney, e o trombudo e gigantesco Frenchy. Não é só serem leais um ao outro: mesmo que eles não saibam ou finjam não saber, o coração de cada um estremece pelo coração do outro. São mais irmãos do que os irmãos. Um dia, os inimigos raptam Frenchy. Pedem um resgate. Owney, o bonacheirão, consegue salvar Frenchy. Reencontram-se e estão os dois, na casa de banho, naquela intimidade masculina de mudar o líquido às azeitonas. Frenchy tira a Owney o seu belo relógio de bolso. Deita-o ao chão e salta-lhe em cima, partindo-o todo. Owney vermelho de raiva, tem vontade o matar. Mas Frenchy nem o deixa falar: “Meu filho da puta, disseram-me que nem querias pagar 500 dólares para me libertar! Eu por ti pagava uma fortuna.”

O gordinho, apopléctico, grita: “Cabrão, pediram-me 35 mil e eu dei 50 mil dólares. Se fossem 500 mil pagava-os. A merda que fizeste ao meu relógio!” E o brutamontes, soturno, cão raivoso Frenchy abre-se em flor, a sussurrar “50 mil…” Tira do bolso o mais terno dos presentes. Owney abre-o: “Um relógio de platina… minha grande besta.” E é melhor fecharmos os olhos para não vermos o abraço deles.

Como é melhor fecharmos os ouvidos para não ouvir a entusiástica fanfarra de gritos no hospital onde, em “Wings of Eagles”, de John Ford, está internado John Wayne, com uma fractura na coluna. Militar, comandante da marinha, um acidente paralisou-o. Os seus marinheiros vêm vê-lo todos os dias. Escondem das enfermeiras, em bouquets de flores, as garrafas de whisky. Mas sobretudo, estão ali, horas perdidas, a tentar que as cavalares pernas de John Wayne voltem a andar. Têm um mantra: “Eu vou mexer este dedo! Eu vou mexer este dedo!”. Repetem-no dias, meses, um ano a fio, sofridas e infinitas horas seguidas: “Eu vou mexer este dedo!” Mas o dedo, esse abstruso polegar de Wayne, não se mexe. Julgam que estes gajos – buddies, kambas, o que lhe queiram chamar –, esculpidos a guerra, mar e sal, perdem a fé? Até a ukelele eles cantam, “Eu-vou-mexer-esse-dedo!”

E um dia, Wayne, deitado de rabo virado à lua, a cara metida no buraco da marquesa, um espelho ao lado para ver o petrificado dedo, vê que o dedo, como a Terra de Galileu, se moveu um bocadinho. Os gritos do seu sargento do ukelele atroam o hospital. A fé, a alegria masculina sobe pelas paredes acima, beija o céu, certo de ter vencido o inferno.

Eu sei do que falo. Quando estive nos cuidados intensivos, no tempo da estúpida pandemia, no cruel Dezembro de 2020, entre os delírios e o meu solitário mantra “eu vou mexer esse dedo!”, ouvia as vozes dos meus amigos. Quando saí, a minha ressuscitada Antónia disse-me que todos os dias o Pedro Norton e o Manolo Bello telefonavam. Nem era bem telefonar, cantavam, sabendo que eu havia de ouvir um “foda-se, tens de mexer esse dedo!”, e tocavam ukelele como os marinheiros de Wayne. Como já não se usam relógios de bolso de platina, ofereço-lhes esta crónica ligeiramente mariquinhas, de quem continua sem perceber um alho que seja de amizades masculinas.

Publicado no Jornal de Negócios

Este é John Wayne cercado de mimos