Os livros deviam vir com música

os meus livros de Setembro
nove livros, um solo de sax e duas novas chancelas

Queria é saber falar de livros com a arrasadora tristeza e vivacidade com que o francês Michel Portal toca clarinete (ou sax). Ponho-me a pensar: como é que Portal agarraria neste A Religião Woke, que outro francês, o professor Jean-François Braunstein, escreveu, tão inquieto com o futuro e com a irracionalidade à solta que ameaça a liberdade? Talvez Portal tocasse “Armenia”, viagem de comovida desesperança a um remoto e perdido passado. A Religião Woke é um livro de resgate da razão. Publica-o a Guerra e Paz editores, sabendo que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações vão oferecê-lo a cada uma das 244 bibliotecas da rede pública. Merecem bem, estes mecenas, um solo lírico do maravilhoso Portal.

 Largo o sax e desato a correr: um pequeno editor (ui, e se o sou, e em todos os sentidos) precisa de ter uns pés com a malícia e a astúcia dos pés de Ulisses. Os meus pezinhos foram lá longe, tempo e espaço, à América de Ayn Rand, falecida há 40 anos, desencantar o seu mais famoso (incensado e odiado) livro, A Virtude do Egoísmo, para meu ingénuo espanto NUNCA publicado em Portugal. Antecipo o indignado coro das bruxas contra a ideia de que «cada homem é um fim em si mesmo e não para os outros»: o que é indigno, porém, é termos medo e silenciarmos, na nossa estreiteza, a voz singular de Ayn Rand, em vez de a publicarmos e discutirmos. Por fim, o termo Objectivismo vai fazer sentido: o livro que o criou fica, a partir de Setembro, entre nós.

E não é só a lamber gelados que nos deliciamos com o contraste dos sabores. A Guerra e Paz ama a contradição, a que, para sossego de algumas almas, também podemos chamar pluralismo. Em Setembro vou editar, do historiador Jean Michel Mabeko-Tali, Rótulos Atribuídos, Rótulos Assumidos, turbulenta incursão pela história política de Angola, com o inescapável e sangrento 27 de Maio de 1977 no epicentro, tal como publico, em parceria com a Sociedade Portuguesa de Autores, a entrevista de José Jorge Letria que deu origem a Urbano Tavares Rodrigues, O Livro Aberto de uma Vida Ímpar, livro que comemora o centenário do nascimento de Urbano. E convido-vos a virem vestir a despida Brigitte Bardot (mas também pode ser Jacques Brel): quem lhes tirou as medidas foi Tony Miranda, o único português que triunfou na Alta-Costura de Paris. Em Metade de Mim, narra ele mesmo a sua singularíssima biografia: e se um chefe de estado lhe encomendasse 400 fatos num só mês…

Fernando Pessoa viajava sem nunca sair do cais: eu ando à aventura, a descobrir autores portugueses, que queiram ancorar a bom porto. Vejam, vejam. Arnaldo da Fonte já não é um jovem: privou com Miguel Torga, e agora, com a serenidade de um Séneca, escreveu Diário de um Desassossegado, obra poliédrica de uma vida, obra de inequívoca e nada esquiva dívida a Pessoa. Outro autor, que a Guerra e Paz acrescenta à sua mais nobre colecção de poesia, é Jorge Muchagato. A sua Biografia da Noite oferece-nos uma poética de forte fôlego discursivo, uma imagética potente, e não vou dizer a palavra «disruptiva»: o livro é bem e belamente melhor do que essa linguagem de jogar à defesa. Provo-o citando: «Os cabelos sujos e negros da miséria / que absorvem a última luz salvífica da tarde, a redenção / intacta na escada descendente da verdade, quando / o vinho fecha as lágrimas, sutura a carne, o silêncio / e as suas larvas, a equação final, a manhã.»

Em Setembro reencontro-me com Eva Dias Costa. Publiquei-a há anos, mas agora deixou-me de boca aberta. Escreveu um livro sério e vivo, um livro rigoroso e tongue in cheek,  apaixonada razão que me fez logo dizer que sim. Chama-se, e que título bom e saboroso, Bestiário Ético, Um Ensaio Sobre a Condição de Todos os Bichos, defesa veemente da consideração moral devida a esses outros bichos, livro em que a Guerra e Paz tem bons e credíveis parceiros, do patrocínio da sociedade de advogados Cerejeira Namora, Marinho Falcão ao apoio da Pentágono Saúde e da Litoral Leituras.

E volto à música: ajude-me, se faz favor, Michel Portal. Toca o «Bailador»? Com aquele arranque de bateria e o contrabaixo logo a seguir… só para dar entrada a Eduardo Lourenço. Jorge Maximino e Nuno Júdice organizaram-lhe esta homenagem: A Mais Frágil das Moradas. Escolheram alguns poetas clássicos e pediram a 17 poetas actuais (eles mesmos, Hélia Correia, Maria do Rosário Pedreira, Fernando Guimarães, Fernando Pinto do Amaral, entre outros) que firmassem um tributo para o centenário da heterodoxa cabeça que foi Eduardo Lourenço. É uma edição com o patrocínio da Gulbenkian e o apoio das Câmaras de Almeida e da Guarda.

São os meus livros de Setembro: que possam ser vivos e perenes como Urbano e Lourenço nos seus cem anos.

Duas novas chancelas

É tudo? Mas qual tudo, qual nada, quando se tem sede de vida, como a que tem a Rita Fonseca, que sacou do chapéu, que nunca usa, duas novas chancelas para agitar a edição portuguesa! Força, Rita Fonseca, boa sorte e vai com tudo ao pote. Menos do que isso é para meninos…

Uma das chancelas é a Euforia, especializada em romance contemporâneo ousado, trendy e provocador, provocador e sexy, caso desta Halle Butler e do seu O Novo Eu. E há de vir aí Boy Parts, Partes Masculinas. Promete. Não, não promete, ameaça e ataca.

A outra chancela é a Crisântemo, vocacionada para o livro prático e de aconselhamento, que começa com um psicólogo português, Miguel Gonçalves, e com o seu Constrói o Teu Caminho, mas tem já também um clássico, Arnold Bennett, dramaturgo e romancista de fulgurante êxito no século XX, que nos explica Como Viver as 24 Horas do Dia. E vai ter, oh la la, um Freud. Uma chancela de vida prática sem recalcamentos.

Mas a Rita há de explicar tudo nas newsletters dela. Há um novo eu na edição portuguesa.

A mão de Marilyn

Nenhum corpo suporta tanta despesa. É o que qualquer um dirá de Marilyn Monroe por pouco que saiba da atribulada vida dela. Mas não, a frase disse-a eu, em 1980, se bem sei, a propósito da actriz Manuela de Freitas. Ora não é de frases que quero falar, mas sim da mão que nos ajuda quando nada nos promete pão, vinho e rosas.

Ouçam a voz de Ella Fitzgerald. Vinha lá do peito, cristalina como se no peito tivesse uma fonte, embrulhava redonda as palavras numa dicção angelina, tinha ritmo e melodia, ousando improvisos a que nem a agilidade de um Ulisses serve de analogia. E agora vejam, Ella, a cantora negra nascida na Virgínia era amiga da alabastrina Marilyn Monroe. Exagero: mesmo a amizade tem uma génese e faz a sua peregrinação. Marilyn, no filme “Os Homens Preferem as Loiras” ia ser ainda mais loira e ia cantar. O seu agente pô-la a ouvir as canções de Ella Fitzgerald e os ouvidos da actriz apaixonaram-se pela voz dessa vasta e abundante sereia negra. Um dia, em Dezembro de 1954, Ella actuou numa daquelas espeluncas onde costumava cantar, em Los Angeles, e Marilyn veio vê-la. Foi amor à primeira vista e Ella contou a Marilyn que um dos seus sonhos era cantar no Mocambo, esse clube onde vinha jantar e dançar a fina flor de Hollywood, e onde um dia uma esposa indignada espetou um garfo de sobremesa no lóbulo da orelha de Errol Flynn, como já aqui contei.

Marilyn não hesitou um segundo. Conhecia o dono e telefonou-lhe. Ora, o dono do Mocambo não queria contratar Ella. Por ser negra? Fosse como fosse, uma coisa era ele não querer, outra era Marilyn pedir-lhe. Marilyn disse-lhe que se encarregaria de fazer da estreia um triunfo tão grande como as Jornadas Mundiais da Juventude, como se lá estivesse o Papa Francisco. Ela mesma, a futura cantora do “Happy Birthday Mr. President” a John Kennedy, estaria na primeira fila, nos primeiros cinco dias, a ouvir a cantora de “(If You Can’t Sing It) You’ll Have to Swing It”. Estarrecido com os dotes divinatórios, e porventura marianos, de Marilyn, o patrão do Mocambo aceitou e, em Março de 1955, Ella Fitzgerald, cantora negra, arrasou no Mocambo.

Sem a mão de Marilyn, essa mão que segurou a mão de John e Bobby Kennedy – história que hei de contar em breve – teria a carreira de Ella sido a mesma? E volto à minha frase, “nenhum corpo suporta tanta despesa”. Escrevi-a talvez num texto trânsfuga e hoje perdido. Só sei que a escrevi porque a cita o João Bénard no Catálogo de Cinema dos Anos 50. Foi a mão do meu professor de Filosofia Antiga, José Gabriel Trindade dos Santos, que lhe estendeu o meu texto. O Zé Gabriel ficara meu amigo e encantava-se com umas prosas delambidas e presumidas da minha ruralíssima lavra. Se a mão dele não as tivesse passado ao seu amigo Bénard, que outra vida teria sido a minha?

E agora, em vez da lenda, imprimo a verdade. Marilyn deu mesmo a mão a Ella, obrigando o boss do Mocambo a contratá-la. Não assistiu às actuações, mas convocou meia Hollywood para a primeira fila: Sinatra, Judy Garland, Bob Hope, creio que até Marcelo e Carlos Moedas. Na verdade, o Mocambo já tinha uma tradição de cantoras negras. O obstáculo é que Ella era gorda, enorme, e sem charme. Teve de vencer também esse preconceito, a começar pelo Mocambo. No Colorado, uma noite, Marilyn voltou a vê-la. Mandaram Ella entrar pela porta pequena. Marilyn, na porta principal, parou e disse ao dono do clube: “Ou ela entra comigo por aqui, ou vou-me já embora.” E abriu-se às duas, juntas, como se do Paraíso, a porta grande.

Publicado no Jornal de Negócios

A dança é uma doce violência

As gotinhas de sangue no colarinho são as que o garfo de uma mulher valente inflingiram a Errol Flynn

Seria Hitler um dançarino de kuduro? Chaplin interpretou Hitler, no arriscado “O Ditador”, filme que realizou quando o Führer estava em plena ascensão. E o que sei é que o pôs, não a dar umbigadas a um redondo globo mapa-múndi, mas sim nadegadas: Hitler ia de kuduro – ou de cu duro – ao mundo!

Nesse mesmo ano é que, na frívola Hollywood, na Sunset Strip, se fundou o Mocambo, o clube a que os mais célebres actores vinham dançar. Foi aí, pouco depois dessa fundação, que Errol Flynn espetou uma sonora lamparina num comentador radiofónico de fofocas, que fora ao Congresso dizer que os filmes de Hollywood não eram imparciais e eram manipulados pelos produtores judeus, destilando por isso um ódio anti-nazi que punha em perigo a neutralidade americana. O grandessíssimo cabrão.

Flynn arriou-lhe aquela lostra bem aviada e, na sarrafusca, perdeu os seus adorados botões de punho de ouro, o que o deixou a roçar o possesso: os meus botões, os meus botões! Sem sequer olhar para Marlene Dietrich, que estava na mesa ao lado com Jean Gabin (juro, que é verdade), foi buscar uma bela lasca para dançar, e voltou, em passos de Fred Astaire, a parar à frente da mesa do animal: “Ainda aqui estás, verme! Roubaste-me os botões de punho, canalha!” Ainda as últimas letrinhas da palavra canalha iam no ar e já a mão de Flynn enfiava uma estrepitosa segunda lambada ao famoso radialista de que não direi o nome. Mas desta vez a mulher do ofendido e vergastado reage e tenta espetar o garfo que tinha na mão num dos belos olhos de Flynn. Ora, Flynn não era só admirado por ter um apetrecho, chamemos-lhe assim, de ultrajante dimensão, que tirava para fora da braguilha, arrancando com ele ao piano a doce simplicidade de um dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, mas era também admirado por esconder dentro de si um espadachim, e foi esse espadachim interior que se desviou, célere, fazendo com que o garfo da nobre e indignada senhora falhasse o olho e fosse enterrar-se no lóbulo da orelha do actor aventureiro.

 O que terá escaldado o espírito de Flynn? Bastará invocar o seu anti-nazismo, quando se sabe que viria depois, certamente sem fundamento, a ser acusado de suspeita espionagem? Ou terá sido o facto de nessa noite o sobredotado Flynn estar a celebrar, deprimido, o seu divórcio da bela Lili Damita, que aprendera a dançar em Lisboa?

A verdade é que também a dança esconde em si a silhueta ágil e fulminante da violência. Bastaria lembrar a umbigada da masemba, esse choque tropical de almas, se tivermos uma noção muito côncavo-convexa do conceito de alma. Mas mesmo na puritana América, e dou como exemplo a sedutora Cyd Charisse, quando levava as soberbas pernas a dançar com Fred Astaire ou com Gene Kelly, esses bailarinos maiores do século xx, não vinha de volta da mesma maneira. O seu segundo marido inspeccionava-lhe as pernas e se vinham com marcadas nódoas negras, sabia que ela tinha dançado com Kelly, se vinham mais macias do que o gole de um aveludado Sauternes depois do foie gras, era certo que as inenarráveis e altíssimas pernas de Charisse se tinham enlaçado apenas e só às inefáveis pernas de Astaire.

E agora vejam, vieram os jornalistas, Errol Flynn senta-se com eles à mesa, no bar ao lado do Mocambo, mostra-lhes o lóbulo da orelha furado, o sangue no colarinho e ri-se da aventura, não sem fazer um elogio à mulher do canalha. “Uma mulher valente, é o que tenho a dizer. Mas há uma coisa; não percebe nada de etiqueta. Espetou-me com o garfo da sobremesa, quando devia ter usado o garfo da carne.”

Publicado no Jornal de Negócios

A putidade dos iconoclastas

Perante o vendaval excrementício e as toneladas de putidade só penso: que desperdício! Falo de muitas das reacções de alguma da que poderia ser a nossa melhor intelectualidade. Fizeram alguns estudos, têm uma escrita prendada, mas em vez da bondade de que foram exemplo o meu professor e padre Manuel Antunes ou Eduardo Lourenço, tocou-lhes a carreta do ressabiamento. Ressentidos, atolam-se em manobras de guerrilha no lodo da mesquinhez.

De que falo? Falo da reacção pavloviana ao cristianismo, no que deles li nas Jornadas da Juventude. O tutano encefálico desses “comentadores” resfolega ódio. Martirizados pela vista da cruz católica e pela suave humanidade do Papa star, berram em jornais e nas redes sociais uma empertigada indignação, bordada com o cuspo de uma superioridade intelectual e moral que derrama o mais escaldante desprezo pela turba, como os sitiados medievais derramavam azeite a ferver sobre o inimigo.

Educado no catolicismo, sou hoje no mínimo um agnóstico; tendo passado brevemente pelo marxismo-leninismo-maoismo, sou hoje, também, um órfão ideológico, ciente de que a seita a que pertenci não se coibiu, onde chegou ao poder, de torturar e de gerar campos de concentração. Também muitos destes apóstolos do desprezo, passaram por uma ou mesmo pelas duas experiências. Mas a orfandade ideológica parece mergulhá-los num hediondo lago de hipervalorização do sujo e do negativo, num ódio a si mesmos que se manifesta na rejeição da (nossa) civilização.

É preciso estar-se na mais reles malignidade para não conceder, talvez agradecer, ao legado do cristianismo, ao melhor que nos deu: a afirmação da pessoa humana, o amor ao outro, mesmo ao inimigo, a aceitação do estrangeiro, o perdão expresso no sacrifício de Cristo, que pretendia, antropologicamente falando, interromper o ciclo de vingança e violência das civilizações anteriores. Leia-se René Girard.

Que historicamente os cristãos tenham também sido sacanas, inquisitoriais, criminosos e esclavagistas, esse livro negro não desmente o bem fundado das suas bem-aventuranças, como o ímpio rol dos crimes comunistas, os maiores do século XX, a par dos nazis, da ignóbil tortura aos hediondos gulags, não invalida que o desejo de igualdade, a vontade de desalienação e de felicidade, que subjaz ao Manifesto de Marx, seja um bem cultural precioso.

Volto ao início: acabrunha ver pessoas com talento, alguns estudos (julgo), deliciadas a costurar palas asininas. O que os leva a entregarem-se a um pensamento anão? Mesmo na crítica à criação de outros, o prazer deles é morder canelas. Com um fiozinho de sangue nos dentes, abocanham um poema ou romance falhado, e ficam, deliciados, a verter enxofre, apertando os torniquetes inquisitoriais, a virem-se com tudo o que conseguem fazer doer: no fim, ficam sentados sobre a dor e o esterco que sucede à dor, como a hiena sobre a vítima apodrecida.

Ah, não invoquem a tradição iconoclástica de um Cesariny ou de um Sena. Para dar só um exemplo, os ensaios de Jorge de Sena estão cheios de compreensão e de amor e, sobretudo, de um rigor que exige um trabalho aturado, aliado a uma humaníssima e larga visão da civilização, das suas mais miseráveis falhas aos mais gloriosos êxtases. E nas “Metamorfoses” e na “Arte da Música” a poesia dele faz o que falta a estes papadores de alpista: oferece um diálogo com a arte, muita dela cristã, numa criação que transfigura e faz de cada leitor um sobre-humano: ali, ao lado dos deuses.

Quando forem criadores assim, sejam então iconoclastas.  

Publicado no Jornal de Negócios

A coincidência de um tiro

O tiro. Esse tiro solitário, inolvidável, é a única coisa que tenho em comum com Vincent Van Gogh. Uma diferença: quando levei o meu tiro, ainda eu tinha as duas orelhas; ora, o tiro de Vincent já só o apanha com uma.

Essa orelha, que Van Gog decepara com uma lâmina de barbear – uma boa lâmina do século XIX, faço notar – levou-a o pintor, como oferta natalícia, embrulhada num pano fino, talvez uma folha de azevinho de adorno, a Gabrielle, a criada do bordel de Arles. E não fora por causa dessa criada, que tinha uma pasmosa cicatriz no braço, feita por um cão feroz, que surgira a disputa com outro pintor, Paul Gauguin.

Van Gogh e Gauguin partilhavam, em Arles, na solaríssima Côte d’Azur, a mesma casa. Partilhavam também o mesmo bordel e, no mesmo bordel, a mesma prostituta. Vejam o tão pequenino e cerrado mundo em que habitavam dois dos maiores génios da pintura: mesma vilória, mesma casa, mesmo bordel, mesma doce puta. Apaixonaram-se, não um pelo outro, o que sempre esteticamente estiveram, mas pela ternura generosa de uma das moças, que morava na que eles chamavam “a rua das raparigas gentis”.

A solidão afectiva cria monstros? Eu diria que cria anjos. Talvez quisessem casar-se com ela! Os dois? E lembro o que dizia Van Gogh, na única carta escrita a meias a outro pintor amigo: “Gauguin é uma criatura pura com os instintos de uma besta selvagem… com ele, sangue e sexo prevalecem sobre a ambição.” Em conflito, Gauguin, o animal selvagem, fugiu do alucinado Van Gogh mergulhando-o na mais deplorável e crassa solidão. E peço desculpa, devia ter dito solitude, que é a sensação de um homem já ser só uma dolorosa agulha a pairar no vazio.

Foi o irmão Theo que arrancou Vincent das garras da depressão. Trouxe-o para Auvers-sur-Oise, perto de Paris, pondo-o ao pé de um médico amigo, o doutor Gachet. Mas que pode um médico amigo contra a tentação de uma pistola?

Volto ao meu tiro. Ia fazer 15 anos e foi o tiro da pulposa plenitude. Havia um comboio de vida, risos no céu como planadores, barcos inteiros de alegria, ruas de raparigas gentis, à minha volta. E uma espingarda. Era só uma espingarda de chumbos, a Diana 27 da minha adolescência. Havia um jogo: passar a mão veloz à frente do cano antes de cada tiro. E houve um chumbo arguto, vivaço, cheio de sentido de humor, que olhou para a minha mão como a lâmina para a orelha de Van Gogh. Entrou-me pela palma de mão esquerda e ficou quase a sair, um insubordinado relevo na pele das costas.

O tiro de Van Gogh entrou-lhe pelo peito e foi alojar-se perto da coluna vertebral. Viera para o campo, com a sua mala de artista. Tinha 37 anos, em 1890, e não foi para pintar que se deixou deslizar pela paisagem. Na mala, um revólver. Não vendera ainda senão um quadro. Dependia do irmão, que o sustentava, e que tivera agora um filho. Os 37 anos de Van Gog pesam como uma montanha sobre quem ama: a morte parece-lhe ter o rosto de uma rapariga gentil. Aponta a pistola ao coração e dispara. Mas a fina e precisa mão que manobra o pincel é tosca a lidar com a pistola. O tiro falha. Caminha até ao albergue onde vive. Descobrem-no à noite, tombado na cama, a camisa em sangue, um brando sussurro na voz: “Quis matar-me. Falhei!”

Sofre durante dois dias, até que Theo, o irmão, tão fraterno como o melhor amigo, chega. Vincent, com um olhar de noite estrelada (ou seria com um olhar de campo de trigo com corvos?) ainda lhe diz: “Falhei outra vez!”

Morre, então, dois depois de ter, a 27 de Julho, atirado ao próprio coração. Outra indecifrável coincidência: é o meu dia de anos.

Publicado no Jornal de Negócios

A mais imoral das belezas

Desejo-vos a todos um Verão tórrido, que vos dê, ao espírito, ao corpo e à pele um «sentido litoral». Um Agosto de mar, porque o mar, mesmo para quem não estima a praia, tem esse fragor do imenso, essa centelha do cosmos descido à nossa pequena Terra. E os livros são como o mar, um movimento perpétuo, negrume e luz, medo e alegria, tormenta e paz. Para os meus amigos, estes livros que querem casar com o mar de Agosto

os meus livros de Agosto
de uns moralíssimos contos infantis à mais imoral das belezas

Não tenho vergonha nenhuma: li muitos contos infantis. Eram, então, para os meus 6 ou 7 anos, mesmo depois, o que hoje é para mim o Houellebecq, que estou a traduzir e publicarei em Outubro – e depois conto como é que a Guerra e Paz se arranjou para conseguir um Houellebcq!

O que eu quero dizer é que os contos infantis, com o lobo mau a deglutir uma avozinha inteira, com os caçadores a rasgar a barriga ao lobo para de lá arrancarem, intacta, a avozinha, deviam soar-me tão transgressores como o que o meu Houellebecq nos conta neste livro sobre o filme pornográfico em que se enredou.

E não largo os contos infantis. Quem os conta é o Mário Carneiro, autor e jornalista televisivo. Chamou ao livro Uma Noite Descansada, Dez Contos Tradicionais Politicamente Correctos. Numa provocação às hostes censórias, o Mário à Branca de Neve e os Sete Anões chamou A Caucasiana e os Sete Reféns da Gravidade. E, seguindo esta linha de «limpa, lava, esfrega e põe a secar», o Mário Carneiro conta os dez contos que enfeitaram a nossa infância, no que, esperamos, nunca venha a ser o absurdo de reescrever assepticamente os livros do passado.

É lindo, é muito divertido e o livro ficou redondinho como a maçã que a Bruxa dá a comer à Bela Adormecida. Quem também quis dormir com a branquinha Bela Adormecida, que por acaso era prima dele, foi o protagonista que o brasileiro Aluíso Azevedo inventou para o seu O Mulato. Contemporâneo e rival de Machado de Assis, Aluísio, filho de portugueses criou em O Mulato um manifesto contra a escravatura e uma denúncia do preconceito racial. Como é que este romance, esse clássico que Jorge de Sena incensa, nunca tinha sido publicado em Portugal?

Outro brasileiro, menino de hoje, é A. E. Bueno. Ganhou, ex-aequo, o Prémio de Revelação Literária UCCLA-CM Lisboa. Publico o seu O Sentido Litoral, admirável estreia poética, tal como publico, do português Leonel Barbosa, a estreia em prosa, com apurado sentido narrativo, Breviário de Medo e Malícia, o outro vencedor do Prémio UCCLA, que será apresentado na Feira do Livro do Porto.

Já disse que estou a traduzir um livrinho polémico de Houellebecq, não disse? Ah, já, mas não disse, pois não,  que antes do Natal, o Rui de Azevedo Teixeira, comando, intelectual e romancista, autor de O Longo Braço do Passado, nos vai surpreender com um novo romance? Está dito e voltamos a falar em Outubro.

E o que diriam os velhos filósofos do livrinho de contos infantis do Mário Carneiro, que reescreve com humor os Três Porquinhos e a Carochinha e o João Ratão? O que diriam eles dos sentidos figurados, das hipérboles, das metáforas, dos eufemismos e, ai-jesus, das catacreses? O que sei é que, a mais de meio de A República, escrita em prosa argumentativa límpida, Platão desata a usar analogias e conta uma das mais belas histórias já escritas, a Alegoria da Caverna. Foi esse texto de grilhões, escuridão, humanos presos a cadeiras, com uma fogueira a lançar sombras sobre a parede de fundo da caverna, que eu agora isolei, dando-lhe autonomia e permitindo, aos que se assustam com a dimensão de A República, que possam ver como nasceu o pensamento humano e a caminhada do conhecimento: ali, nesse pequeno ovo que é a Alegoria da Caverna.  Ah, numa ousadia que vou pagar caro, escrevi eu mesmo, com uma boa ajuda de Allan Bloom e outros sérios estudiosos de Platão, uma introdução ociosa.

Outro filósofo, Roger Scruton, procuraria e certamente reconheceria nos contos infantis, o que é o centro deste seu livro que, esgotadíssimo, reedito em nova versão: Beleza. Leiam, pelas alminhas, leiam, Beleza, Uma Muito Breve Introdução e descubram que a inspiradora beleza também pode ser perturbante, perigosa e até imoral. Pode? Não deve… ah, com a vírgula fica muito melhor: Pode? Não, deve!

Manuel S. Fonseca, editor