Da tola à justa vaidade

Berlim, pois claro

Lá adiante, talvez fale de Helmut Schmidt, ou melhor de Balsemão, mas devo começar por mim, pela minha vaidade mais tola do que mansa. O Liceu Salvador Correia, em Luanda – o mais belo liceu do mundo, e vejam como a inflada ponta da vaidade já penetra a prosa –, tinha como professor de educação física o sôtor Ramalho.

Ora, o sôtor era dado a um certo “hoje, não estou pra isso!”, e em vez de nos levar para os belos campos de jogos ao ar livre do liceu, escolhia, às vezes, o remanso do ginásio para uma espécie de futsal, que inventara. Das caixas do plinto fazia as balizas e jogavam duas equipas de quatro, divididas em dois defesas e dois avançados, sem guarda-redes, sendo que nas áreas das balizas só podiam entrar os avançados de quem atacava e os defesas de quem defendia. O sôtor pôs-me a defesa e eu, ao atacarmos, coloquei-me em cima da área inimiga, a ganhar segundas bolas, como agora se diz, e a empurrar a bolinha sempre lá para dentro. Resultado, a bola quase não saía da área adversária, exponenciando (e vejam como o tempo verbal é mera gabarolice) as nossas oportunidades de golo. Eis que o profe Ramalho percebeu. Apitou e pára tudo! E explicou a toda a gente, por “a” mais “b”, o que os meus impertinentes onze anos estavam ali a fazer, nomeando-me estratega-mor do Portugal de aquém e além-mar. Aquilo podia ter-me dado cabo da vida: senti-me como Eusébio, no Parque dos Príncipes, em Paris, ao marcar três golos ao Santos de Pelé, com 40 mil franceses a gritar, Euzébiô, Euzébiô, Euzébiô.

Para falar, não da tola, mas da justa vaidade, chamo aqui o segundo golo de Eusébio, no 5 a 1 ao Real de Madrid, no Estádio da Luz, em 1965. E lembro, Simões põe a bola no pé de Eusébio, ainda antes da linha de meio-campo. Eusébio avança, num trote elegante. A defesa madrilena reagrupa-se e há três defesas que se chegam à frente. Eusébio deixa que o cerquem, e depois, com um domínio de bola shakespeariano, pé esquerdo e o pujante corpo todo, estilhaça o trágico triângulo opositor. Entra então na área, e quando um quarto defesa vem, de insidioso punhal macbethiano no pé, Eusébio dispara para o golo avassalador e colossal: da antiguidade grega, descera ao Estádio da Luz a mais esplêndida figura mitológica.

Vejam, Eusébio respirava glória, mais do que vaidade. Já Norman Mailer, o famoso escritor, era tão vaidoso, que tinha de purgar esse pecado mortal com a lixivia da autodepreciação.  Candidatou-se a mayor de Nova Iorque e o slogan dos seus cartazes era: “Votem no canalha!” Mas o que quero mesmo contar é a vaidade que tive da justa vaidade alheia. Tinha ido com Francisco Balsemão a Berlim, a uma das suas mil conferências. Também falei, um belo desastre, aliás, e fomos convidados para um jantar num Gambrinus da cidadezita que é Berlim. No fim, estava numa outra mesa, o Embaixador alemão nos EUA, uma estrela que tinha toda a sala em salamaleques. O nosso anfitrião quis conceder a Balsemão a honra de o apresentar à grande vedeta. Assim foi. O ascendente Embaixador alemão, mal chegámos à mesa, interrompeu a apresentação, e foi directo a Balsemão: “O senhor já não se lembra de mim, pois não?” Balsemão ficou meio encavacado (salvo seja) e a estrela da noite rematou: “Estive consigo, quando o senhor era primeiro-ministro de Portugal e se encontrou com Helmut Schmidt. Eu vinha atrás, era o que lhe levava a mala. Que grande momento, para mim.” Quando saímos, Balsemão respirou o ar fresco da noite e disse-me: “Às vezes, sabe bem afagarem-nos o ego.” Fora ele, afinal, a estrela da noite.

Publicado no Jornal de Negócios

Leave a comment

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.