Onde se pode aprender a morrer?

Eis uma das minhas fixações: a morte. E, amigos, se é que me autorizam a expansão afectiva, tenho de ser mais exacto: a minha fixação fatal é a morte com classe.

Peço que olhem para os pés de Maria Antonieta. Esqueçam, por um instante, o seu olhar altivo, a fina boca com que dizem, e é falso, ter mandado os descamisados e vítimas da fome comer brioches. Os pés de Maria Antonieta, arquiduquesa da Áustria, rainha consorte odiada pelos grandes de França, caminham para o cadafalso. Mesmo Luis XVI, seu marido, que demorou seis penosos anos a consumar o casamento, ter-se-ia, agora, comovido com esses pés que rasam o chão.

Henri Sanson, o seu carrasco, cortou rudemente o cabelo à rainha e amarrou-lhe as mãos atrás das costas. Foi assim que veio na carreta dos condenados à morte. Manteve-se firme e estóica no meio da turbulência revolucionária. Tanto que o conde de Mirabeau, derradeiro conselheiro, olhando para a desoladora solidão dela e de Luis XVI, terá dito “o rei só tem um homem ao seu lado, a sua mulher”!

Maria Antonieta levanta-se agora para subir os degraus do cadafalso. Oscila e pisa o pé tosco de Sanson, o carrasco, ele mesmo filho do carrasco que guilhotinou o rei. E ouçam, e essa sim, é a boca da rainha de França, a falar: “Perdão, senhor. Não o pisei de propósito!” O sapato cai-lhe do pé e alguém na turba, um fetichista revolucionário, o apanha.

Uns singelos minutos depois, a lâmina voa lá do alto e separa a cabeça do corpo de Maria Antonieta, essa rainha que, espontânea, acabara de dizer, “Perdão, senhor, não o pisei de propósito”.

Maria Antonieta era rainha. Mas como morre um pirata? Venham comigo a Boston. Ainda o século XVIII ia a meio e não morrera nem sequer nascera Maria Antonieta, já William Fly queria ser marinheiro. Alistou-se, na Jamaica, no navio de que era capitão John Green, um comandante cruel. Fly entra depressa em choque com o capitão energúmeno. Com outro marinheiro, ataca o capitão e lança um motim. Querem deitar o capitão ao mar, mas ele agarra-se com uma das mãos a um mastro. Logo um dos amotinados, com um machado, lhe corta a mão pelo punho.

O motim triunfou e Fly é o novo capitão. Desfralda a bandeira dos piratas e converte o barco numa arma de assalto. Durante três meses ele e a tripulação são felizes: assaltam, roubam, como se pudesse voltar a Idade de Ouro da pirataria. Mas ao quinto navio, a tripulação que aprisionam é tão numerosa que acaba por tomar conta do barco de Fly: atiram-no, em Boston, para o calabouço.

A boca de um pirata não é igual à boca de uma rainha. Da boca do pirata William Fly ninguém ouvirá um “Perdão, Senhor!” Tentam tudo, que se arrependa, que reconheça e confesse os crimes. Dirá sempre aos inquisitoriais calvinistas: “Não sou culpado de nenhum crime. O capitão sim, que era selvagem e bárbaro para os marinheiros. Mas a um capitão ninguém o acusa, só aos marinheiros sofredores que se amotinam!”

E vejam-no. Sai da prisão com outros três condenados em pranto. Da sua boca nem um ai. Os pés, sim, parece que voam. Os degraus para o estrado onde montaram as forcas, sobe-os em passos leves e seguros como se fosse uma Leanora pela verdura. Agarra do chão a corda que o há de enforcar. Atira-a sobre a barra em que vai deslizar e olha para o nó fatal. Chama o carrasco, desata o nó e volta a fazê-lo como deve ser. Sorri aos que assistem, deixa cair o bouquet de flores que trazia, como Maria Antonieta o sapato, e acerta, ele mesmo, o nó ao seu pescoço. Morre, minutos depois. Onde se pode aprender a morrer assim?

Publicado no Jornal de Negócios

O riso de Salman Rushdie

o riso de dois amigos

O povo oprimido engana-se muitas vezes, o amigo não. Vou já continuar, mas antes preciso de falar da solidão. Foi numa solidão amena que Salman Rushdie escreveu um romance, “Os Versículos Satânicos”.  Publicou-o em Setembro de 1988, e pergunto-me em que solidão o não leu o ayatollah Khomeini. Talvez tenha adormecido e o livro tenha deslizado para o seu fofo tapete: sem som e sem fúria. Mas alguém lhe falou do retrato que os “Versículos” davam de Maomé, ou disseram-lhe que talvez fosse ele mesmo, Khomeini, o imã do capítulo IV, que vem, do exílio, incitar um povo à revolta, desgraçando-o.

Eis o que, em nome do provo oprimido, fez Khomeini: mandou matar Rushdie, romancista indiano de origem islâmica, no Dia dos Namorados, a 14 de Fevereiro de 1987. Ou seja, e porque os povos oprimidos não mandam matar ninguém, lançou-lhe uma fatwa, forma de mandatar e abençoar todos os devotos para executarem, à faca, a tiro ou à bomba o indiano ímpio.

Vejam agora a solidão de Rushdie. Estava no funeral de um consumado transumante, o escritor Bruce Chatwin, seu amigo do peito. Um funeral é já uma amarga pílula de solidão, esquinas tapadas pelo pálido rosto da morte. Mas chega a fatwa e todos, mesmo os pálidos rostos da morte, se apressam a abandonar Rushdie. À sua volta, refém de uma fatwa Godot, instala-se uma solidão gelada e cósmica. Ninguém, nos intelectuais pares de Rushdie, nem à direita ou sequer à esquerda, veio com o conforto de um aceno, uma singela chávena de chá.

E minto. Veio o amigo. Chamava-se Christopher Hitchens e pôs o seu corpo à frente do corpo de Rushdie. Diz Rushdie, no seu belo “Linguagens da Verdade”, que a tradução de Isabel Lucas faz ainda mais fácil de ler, que todos se enganaram quando disseram que Hitchens era seu amigo íntimo e por isso o defendia: “A verdade é que ele se tornou meu amigo íntimo porque queria defender-me.”

Chris Hitchens já morreu, mas em vida, à defesa sem reservas da liberdade artística de Rushdie, juntou mais mil batalhas: foi de esquerda e foi de direita, tentando seguir sempre a verdade, consciente de que a verdade, a ética e a beleza, umas vezes são de esquerda, outras de direita. As razões de Rushdie, o seu combate ao fanatismo e a esta coetânea e parva ideia da “política de ofensas”, a sua defesa da liberdade e do humor, tiveram em Hitchens um espelho clarificador. Hitchens defendeu-o, hospedou-o em sua casa, levou-o mesmo a um encontro com o presidente americano. Sem medo, Hitchens arriscou, por fraternidade, converter-se num alvo do ódio sectário desses aiatolas que a cada novo Dia dos Namorados, se bem sei, mandavam a Rushdie um postal a recordar que lhe cortariam a garganta ou lhe furariam o coração.

Como é que se agradece a um amigo assim, ao amigo íntimo? Eu lembro a amizade de dois cómicos, Jerry Lewis e Charlie Chaplin. Ficaram íntimos e já Chaplin era mais velho do que três aiatolas juntos, Jerry veio dar um espectáculo a Paris. Estava lá a Europa das artes em peso, mas Jerry não viu Chaplin. Soube depois, em lágrimas, que Chaplin viera, mas se escondera junto ao controle de luzes: não quis ser visto para não roubar protagonismo ao amigo íntimo.

Rushdie, na última vez que jantou com Hitchens, e sabia que era a última – o cancro de Hitchens já pronto a roubá-lo –, foi com outro amigo, o poeta James Fenton, e fizeram rir Hitchens. Fizeram de Jerry e de Charlot, como se fossem adolescentes e a vida estivesse ali em flor, frescos e doces versículos divinos prontos a ser chupados e saboreados. O riso é a raiz da amizade.

Publicado no Jornal de Negócios

A mão de Deus

Houve uma guerra, é bom que se diga. Eu vou, é certo, falar de paz, da paz gritada, apupada, esfusiante e delirante, que é um jogo de futebol. Não posso é esconder que houve antes uma guerra e que as tropas inglesas da democrática Senhora Tatcher tinham agarrado pelos colarinhos e humilhado as tropas do ditador argentino, o general Videla.

A guerra fora nas Malvinas, mas estava-se agora no Estádio Azteca. O nome do estádio já provoca uma aflição kirkegaardiana: a angústia dos ecos ancestrais do choque de índios e conquistadores ressoava ainda em cada pedra do estádio. E estarem frente a frente, nessa final do Mundial de 1986, no quente mês de Junho, as equipas da Inglaterra e da Argentina, deixa cair sobre esse confronto um épico pingo de “capsaicina”, a substância activa “del chile”, o picante que faz arder “las carnitas” e “los tacos” mexicanos.

No Estádio Azteca, eram duas civilizações que estavam frente a frente. E lembrem-se, o próprio esférico, uma estreia, era uma bola novinha em folha, igualmente chamada Azteca, o nome a acordar os demónios do passado, mas na forma um exemplo de revolução tecnológica, a primeira bola de futebol a dispensar o couro, toda em adricron, um revestimento sintético impermeável, trinta e duas faces hexagonais elegantes, e de uma inquebrantável longevidade. O horror que foi jogar anos com bolas de catechu, a que uma boa chuvada acrescentava meia tonelada: eis o que afogou o mínimo Eusébio que havia em mim, a encharcada e incirculante bola de catechu.

Adiante e vejam, é a nova bola revolucionária que circula entre Shilton e Lineker, entre Valdano e o pequeno deus chamado Diego Maradona. Durante 45 minutos, esses dois mundos ressentidos, a nórdica rosa dos Tudor e o azul ultramarino das pampas, mediram-se, sem se ferir. Mas aos seis minutos da segunda parte, o defesa Steve Hodge tenta aliviar a pressão sobre a sua área: a mal pontapeada bola ganha efeito e cruza a área, Shilton, o guarda-redes, salta com Maradona. O punho de Shilton vai lá acima, a 200 metros de altura, mas o pequeno Maradona, num exercício de prestidigitação, voa 201 metros e a sua cabeça desvia a bola para o fundo das redes. E há aqui um grande imbróglio teológico-anatómico: a cabeça de Maradona ali, a 201 metros de altura, tão perto do céu, foi roubada por um Deus omni-invejoso. Deus, sentindo o homérico jogo de futebol a roçar-lhe os berlindes, quis também jogar e pôs a sua mão onde devia estar a cabeça prodigiosa de Dieguito. Diga-se, àquela bola, toda feita do leve adricron, bastaria, se Deus quisesse, um simples sopro, mas quem não quereria, em 1986, mesmo Deus, sopesar na própria mão a leveza desse revestimento sintético, o poliuretano, à prova de água.

Essa bola, a Azteca do Estádio Azteca de 1986, esteve, até ao ano passado, nas mãos do árbitro tunisino, Ali Bin Nasser, que Deus iludiu naquela jogada disputada nas nuvens. Quis agora o árbitro, sufocado pela insidiosa presença de Deus, descarregar a temível sombra sobre a humanidade. Num leilão, alguém pagou 2,4 milhões de dólares para ter em casa a bola que a mão de Deus tocou. Já pela camisola de Maradona, que ele, no fim do jogo, dera a Hodge, o inglês que fez o involuntário centro, em leilão alguém ofereceu e pagou mais de 9 milhões, a mais cara camisola de futebol de sempre.

Onde está, pergunto eu, a bola que a mão de Vata meteu na baliza do Olympique de Marseille, no jogo que estes meus olhos viram e que levou o Benfica à final da Liga dos Campeões? O que eu não pagaria por ela em leilão!

Publicado no Jornal de Negócios

Era a Cinemateca adolescente

“Sou o presidente! Quero entrar!” Os corpanzis do Grave e do Gigante empertigaram-se e ripostaram curto e cerce: “Tem bilhete? É que se não tem bilhete, não entra!” Esse presidente da Câmara Municipal de Lisboa não era nem o gentil Carlos Moedas, nem o dinâmico António Costa. Era o lendário Krus Abecassis e queria impedir a exibição do filme “Je Vous Salue Marie”, uma peça mais lírica do que iconoclasta do falecido Godard. Sem bilhete, Abecassis não entrou. Lá dentro, na sala, não diria que a plateia fluía e refluía num arraial de porrada, mas havia empurrões, gritos, choros e polícias de cassetete no ar.

Uns gentis jovens católicos tentavam acabar com a sessão e uns reformados cineclubistas de saudoso coração comunista ajudavam a polícia a caçar os putos de rebeldia fundamentalista: “É aquele. E apanhe aquele, senhor guarda!”. Os putos, com um olhar a faiscar de desdém, chamavam-lhes “seus pides”.

O que quero dizer é que esse mundo invertido era a natureza intrínseca da Cinemateca do João Bénard e do Luís de Pina, nos anos 80. A adolescência da Cinemateca foram esses anos heróicos que nimbavam, diga-se, o coração de cada um dos funcionários.

Havia um par amoroso, com o mesmo amor que unia Jack Lemmon e Walter Matthau nos filmes de Billy Wilder: eram o senhor Gil, motorista de raízes malandras e alfacinhas, e o senhor Alberto, suave príncipe majestoso de Cabinda, responsável pela manutenção. Formavam a cálida e langorosa simbiose luso-africana. “Ó senhor Alberto, estão três lâmpadas fundidas na sala de cinema!” O senhor Alberto olhava, lançava um fundo suspiro e sussurrava vogais e consoantes num arrasto lento: “Uiiii, issso agora…” Era impossível não amar o senhor Alberto.

O senhor Gil era vivo e ladino. Um dia, quase Natal – contou-me a Antónia, minha mulher –, o Gil conduzia o Bénard. Fez conversa falando da chuvada e da ventania que tinha feito essa noite. O Bénard tinha a cabeça, sei lá, na Anna Karina ou na Marilyn, e nada de troco, de modo que o senhor Gil se calou. Nesse silêncio pré-natalício o carro entra na praça de Londres e o Bénard, arregala os olhos de espanto: “Ó sô Gil, deve ter sido uma tempestade de Adamastor. Olhe para estas árvores caídas por todo o lado.” O Gil ia tendo um ataque: “Sôtor, sôtor, quais árvores caídas, isso são os pinheiros de Natal à venda…”

Saí da Cinemateca e levei comigo, para a SIC, o Chico Grave e, em part-time, o Cintra Ferreira. Com eles, eu, que nunca fumei, gostava de chupar uns havanos, os Partagas série D n.º 4, que eram então o supra-sumo. Eles olhavam-me com carinho e, vá lá, condescendência: “Eh pá, este gajo nem fumar sabe!”

Só uma vez tirei o Grave do sério. Ele queria ficar com um carro meu. Decidi vender-lhe o popó e fixei na minha cabeça um preço. Fomos almoçar – era sempre ao domingo. Ele fez uma oferta, 14 mil. “Vai-te lixar, Chico, nem penses”, cortei logo. “Lá estás tu, com a mania que és capitalista”, gritou a luta de classes que lhe morava no ventrículo esquerdo. “Ah, disse-lhe, não julgues que me assustas. 14 é que não!” “Ok, ok, quanto é que pedes?”. “Quero 10 mil”, disse-lhe eu. Ele ia morrendo de confusão, por detestar favores: pagou-me o almoço, está claro. Eram, o Grave e o Cintra, brutos, grandes, masculinos, duas peças de cristal. Adoravam filmes e livros. Quando foram de transumância para o céu, agarrei nas gordíssimas bibliotecas de cada um deles e doei-as (por ordem do Cintra e obedecendo aos herdeiros do Chico) à Biblioteca de Samora Correia. Estão lá, quase portas contíguas, o Grave e o Cintra, juntos na terra como agora no céu.

Publicado no Jornal de Negócios

Da tola à justa vaidade

Berlim, pois claro

Lá adiante, talvez fale de Helmut Schmidt, ou melhor de Balsemão, mas devo começar por mim, pela minha vaidade mais tola do que mansa. O Liceu Salvador Correia, em Luanda – o mais belo liceu do mundo, e vejam como a inflada ponta da vaidade já penetra a prosa –, tinha como professor de educação física o sôtor Ramalho.

Ora, o sôtor era dado a um certo “hoje, não estou pra isso!”, e em vez de nos levar para os belos campos de jogos ao ar livre do liceu, escolhia, às vezes, o remanso do ginásio para uma espécie de futsal, que inventara. Das caixas do plinto fazia as balizas e jogavam duas equipas de quatro, divididas em dois defesas e dois avançados, sem guarda-redes, sendo que nas áreas das balizas só podiam entrar os avançados de quem atacava e os defesas de quem defendia. O sôtor pôs-me a defesa e eu, ao atacarmos, coloquei-me em cima da área inimiga, a ganhar segundas bolas, como agora se diz, e a empurrar a bolinha sempre lá para dentro. Resultado, a bola quase não saía da área adversária, exponenciando (e vejam como o tempo verbal é mera gabarolice) as nossas oportunidades de golo. Eis que o profe Ramalho percebeu. Apitou e pára tudo! E explicou a toda a gente, por “a” mais “b”, o que os meus impertinentes onze anos estavam ali a fazer, nomeando-me estratega-mor do Portugal de aquém e além-mar. Aquilo podia ter-me dado cabo da vida: senti-me como Eusébio, no Parque dos Príncipes, em Paris, ao marcar três golos ao Santos de Pelé, com 40 mil franceses a gritar, Euzébiô, Euzébiô, Euzébiô.

Para falar, não da tola, mas da justa vaidade, chamo aqui o segundo golo de Eusébio, no 5 a 1 ao Real de Madrid, no Estádio da Luz, em 1965. E lembro, Simões põe a bola no pé de Eusébio, ainda antes da linha de meio-campo. Eusébio avança, num trote elegante. A defesa madrilena reagrupa-se e há três defesas que se chegam à frente. Eusébio deixa que o cerquem, e depois, com um domínio de bola shakespeariano, pé esquerdo e o pujante corpo todo, estilhaça o trágico triângulo opositor. Entra então na área, e quando um quarto defesa vem, de insidioso punhal macbethiano no pé, Eusébio dispara para o golo avassalador e colossal: da antiguidade grega, descera ao Estádio da Luz a mais esplêndida figura mitológica.

Vejam, Eusébio respirava glória, mais do que vaidade. Já Norman Mailer, o famoso escritor, era tão vaidoso, que tinha de purgar esse pecado mortal com a lixivia da autodepreciação.  Candidatou-se a mayor de Nova Iorque e o slogan dos seus cartazes era: “Votem no canalha!” Mas o que quero mesmo contar é a vaidade que tive da justa vaidade alheia. Tinha ido com Francisco Balsemão a Berlim, a uma das suas mil conferências. Também falei, um belo desastre, aliás, e fomos convidados para um jantar num Gambrinus da cidadezita que é Berlim. No fim, estava numa outra mesa, o Embaixador alemão nos EUA, uma estrela que tinha toda a sala em salamaleques. O nosso anfitrião quis conceder a Balsemão a honra de o apresentar à grande vedeta. Assim foi. O ascendente Embaixador alemão, mal chegámos à mesa, interrompeu a apresentação, e foi directo a Balsemão: “O senhor já não se lembra de mim, pois não?” Balsemão ficou meio encavacado (salvo seja) e a estrela da noite rematou: “Estive consigo, quando o senhor era primeiro-ministro de Portugal e se encontrou com Helmut Schmidt. Eu vinha atrás, era o que lhe levava a mala. Que grande momento, para mim.” Quando saímos, Balsemão respirou o ar fresco da noite e disse-me: “Às vezes, sabe bem afagarem-nos o ego.” Fora ele, afinal, a estrela da noite.

Publicado no Jornal de Negócios