
Ainda me lembro dos enxovalhados beijos na boca que então dava a Mao-Tsé Tung. Foi ali entre os meus 19 anos e os vinte e meio. Viera de Luanda estudar direito e o maoismo lisboeta de 1973 chamuscou-me – sim, houve um maoismo lisboeta de 73, pincelado a delirantes, esquizóides e disléxicos toques de Sorbonne, Paris VII. O maoismo lisboeta só não conseguiu estrangular o meu vocal e fidelíssimo pró-americanismo.
Vejam como essa serpente yankee nasceu no meu peito: o meu pai, tinha eu sete anos, sentou-me na motorizada NSU e levou-me a ver o consulado americano em Luanda. Acabara de ser apedrejado e os americanos acusados de apoiarem os “terroristas” que, em Março de 61, tinham posto o Norte daquela “Angola é nossa” em agonia. Vi as pedras na rua, o moderado rasto de destruição, e o impávido edifício do Consulado, tão bonito como a desaparecida casa-grande de Dona Ana Joaquina, aristocrata arquitectura luandense agora em extinção. Os meus sete anos apaixonaram-se por esse símbolo de América que ali, sem fugir, dizia verdades inconvenientes.
E tudo à minha volta, um ou outro Chevrolet, as carrinhas Ford, as jeans Wrangler e levi’s, os quedes (ou keds), que eu calçava, tudo era um hino que absolvia a América de culpas. O jovem Kennedy e a sua Jacqueline ajudavam. E depois, quando vi “Chove no Meu Coração”, meu primeiro filme de Coppola ainda antes de saber quem era Coppola, e quando vi “Easy Rider”, sem saber que um dia falaria com Dennis Hopper, os vírus do pró-americanismo ferraram-me uma desalmada febre que nunca mais me largou: o meu abençoado paludismo é filo-americano.
Eis o que então eu achava um caso de súbito analfabetismo da esquerda a que pertencia: o seu anti-americanismo. Aquilo atazanava-me tanto como o ciúme-agulha a esburacar o coração mouro de Othello: como podia a esquerda da liberdade e de um mundo melhor, deslargar-se da livre vida americana, da sua irreverência desengravatada, dos filmes, do rock ‘n rol (ó meu!) dos Doors e Hendrix aos Jefferson Airplane e à sua Grace Slick, epítome da sexualização, dos gemidos nos drive-in, dos romances de Hemingway, Faulkner e Steinbeck, do pela estrada fora de Keroauc, dos inclementes uivos de Ginsberg, dos apolos a ir à Lua!?
Essa impressiva paisagem era – é que era! – o autêntico anti-salazarismo. Essa planturosa América, estética, inestética, charrada, a litros de Budweiser, com Henry Miller a vazar sexo e plexo na cama e fora da cama, era a garantia de um infarto ao coraçãozito santacombadense da nossa ditadura.
O impulso pol-potense do meu breve maoismo parou aí: eu nunca poderia viver sem essa América que já conhecia sem nunca lá ter ido. O frigorífico que os meus pais tinham na casa caluanda do musseque Sambizanga, era um General Electric, tão americano como Charlotte e Henry, os amantes de “As Palmeiras Bravas”, romance de Faulkner que nos incita ao amor do amor. Ao amor do amor incitava-me também o “Born To Be Wild” dos Steppenwolf, a voz que proclamava sonhos de Martin Luther King, a tragédia de Dallas com a cabeça estilhaçada de John no aflito regaço de Jackie, meu primeiro soluço por um político.
Hoje, que os radicalismos parecem sufocar esse maravilhoso pântano de vida, prolífico, indomável, não sei se ainda existe essa minha América, que tanto era a de John Wayne como a de James Dean, essa América que vinha dos anos 50 de “A Leste do Paraíso” ao começo dos anos 70 de “O Padrinho”. Vamos morrendo, lentos, na morte das paisagens em que se deitava, deleitado, o nosso imaginário.
Publicado no Jornal de Negócios