Os meus livros de Julho, mês em que nasci

os meus livros de Julho
escaldantes e apresentados com linguagem de fazer corar

Ah, a cacimbada doçura das minhas adolescentes férias coloniais. Por uma bizarria salazarista, as férias escolares angolanas, do lado de lá do Equador, coincidiam com as de Portugal. No pico do Verão luandense, de Dezembro a Março, grelhávamos no belo liceu. De Junho a Setembro, época de cacimbo, tínhamos férias e, claro, não havia praia para ninguém. Líamos, líamos, líamos. Éramos nómadas e líamos.

Foi a pensar nessas leituras que criei, na Guerra e Paz, uma nova colecção: chama-se Na Praia… e mete toalha e areia. Começo com dois livros: Freud na Praia: A Psicanálise na Toalha e na Areia e Churchill na Praia: O Velho Leão na Toalha e na Areia. São biografias cálidas, belos retratos da vida, ideias e acção de Churchill e Freud: irrecalcadas leituras de prazer e desejo, em que não é preciso matar o pai. Uma promessa: em breve, também Napoleão e Darwin virão estender a toalha nesta areia.

Ofereço-vos ainda outra biografia, mais musical, menos estival. Escrita pelo Prémio Nobel da Literatura, Romain Rolland, A Vida de Beethoven é um clássico tenso e tonitruante, para se ler com a abertura da Quinta Sinfonia em fundo.

Deixem-me convocar outra vez a música, um adagio agora, para apresentar o último romance de Luís Carmelo. Chama-se O Planisfério e foi o último livro que o nosso autor escreveu, antes de partir, ainda tão novo, chamado pelos deuses. De uma prosa suave, de veludo, esta é a história de um protagonista que perde tarde a virgindade. Mas será só isso?

Estes são os livros que chegam às livrarias a 11 de Julho. Estivais? Bom, mas no dia 25 as livrarias entrarão em combustão. Com A Cona de Irène, primeiro. Sobre Irène, e sobre esse singelo atributo que dá título ao livro, escreveu, clandestino, o surrealista Louis Aragon. O livro foi proibido e proibido e proibido (três vezes! três vezes) e, não obstante, na nudez franca da sua linguagem emerge uma ternura ingénua, quase infantil: «Ó fenda, fenda húmida e doce, querido abismo vertiginoso…» Estremece-se? Ligeira e sentidamente.

Perseguido, esfaqueado numa ruela de Roma, foi o grande Pietro Aretino. Tinha escrito Os Sonetos Luxuriosos, um livro em que canta, num vernáculo desabrido, o amor e as atléticas e lascadas posições do amor: «Fodamos, meu amor, fodamos presto, / Pois foi para foder que se nasceu, / E se amas o caralho, a cona amo eu; / Sem isto, fora o mundo bem molesto.» Primeiro livro erótico ilustrado da Renascença, a proibição papal e mil perseguições não o destruíram: aqui está, na tradução de um grande poeta, o brasileiro José Paulo Paes.

Até coro: o fôlego erótico da Guerra e Paz está imparável. Uma narrativa contemporânea, O Monólogo da Faxineira, da autoria de um estreante tardio, o português Alcídio de Oliveira, mereceu à escritora Clara Pinto Correia este elogio: «… da primeira palavra até à última, uma cena de cama muito bem pensada.» E sim, este romance é a descrição incisiva – franca e cheia de ironia – da vida sexual de uma empregada brasileira. Um elogio da imigração? E se for a imigração a elogiar-nos a nós?

Outro romance português é o de Catarina Costa, vencedora, o ano passado, do Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. É o seu segundo romance, E então, lembro-me, e é uma distopia. Entre reminiscências, uma mulher procura entender quem é. Sabe que está amnésica e castrada: sem memória nem ovários. Um grande arranque.

José Jorge Letria quis dizer O Que Faltava Contar. É um livro memorialista. A cada página episódios de vida, revelações de figuras como José Saramago ou Luiz Pacheco, Zeca Afonso, Ary dos Santos ou Ruy Belo. Era preciso que alguém contasse.

E fecha o mês de Julho um dos mais belos livros de filosofia, o mais legível e bem organizado, que conheço. Chama-se Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes. É de Roger Scruton. É mais do que um livro, é uma conversa connosco, uma conversa sobre «as preocupações mais amplas da civilização», sobre a música ou o sexo, sobre Deus, a liberdade, o demónio ou a História. É o pensamento em majestosa onda alta a varrer a praia e o Verão.

São os meus dez livros de Julho, o mês em que nasci.

Manuel S. Fonseca, o editor

Despe essas calcinhas

“Se o pénis dele não fosse tão maravilhoso, tê-lo-ia deixado há muito!” Foi o que escreveu Carole Mallory na biografia, “Loving Mailer”, que dedicou ao escritor, seu amante durante nove anos. Estou a falar de Norman Mailer, o autor de um tremendo livro de guerra, “Os Nus e os Mortos”, um dos grandes romances americanos do século XX.

Carole publicou as suas memórias de Mailer já três anos depois da morte do escritor, o que significa que podia ser sincera sem risco de vida, por estarem os temíveis punhos de Mailer em sossego e descanso no irrevogável caixão.

O livro saiu, aliás, no mesmo dia em que a última mulher de Mailer, Norris Church Mailer, publicou também outra acalorada biografia, “A Ticket to the Circus”, e numa coisa o sólido testemunho de Norris coincide com o de Carole. Referindo-se ao mesmo atributo de Mailer que Carole louvara, Norris chama-lhe, e peço desculpa pela sincera ternura do palavrão que ela usou, um “esplêndido caralho”.

A incomensurável vaidade de Norman Mailer deve ter explodido no seu caixão em sonoro fogo de artificio. Arthur Miller, o escritor que casou com Marilyn Monroe, e que viveu alguns anos no mesmo prédio de Mailer, lembra-se de Norman ainda ele um chavalo, acabadinho de sair da tropa. Norman veio ter com ele e apresentou-se como escritor. Disse a Arthur que vira e gostara da sua peça “All Our Sons” e que era também capaz de escrever uma peça igual. Arthur não conseguiu conter o riso, impressionado com a convicção e a prosápia daquele novato.

Alberto Moravia, o italiano autor de “Duas Mulheres”, conta que conheceu o megalómano Mailer, no lançamento da nave Apollo 11, que chegaria à Lua. Moravia e Mailer foram convidados a escrever sobre o tema. Lembra o italiano: “Ele escreveu um livro de 500 páginas, eu escrevi três crónicas.”

Se as duas biografias confirmam a pulsão para o excesso e a inadjectivável vaidade desse judeu que um dia José Cardoso Pires foi encontrar em Brooklyn, como numa longa noite de copos, no Festival de Cinema de Tróia, nos contou, ao lado do Fernando Lopes, do Dinis Machado, do Pedro Bandeira Freire, desse bando de Tróia, de que, agora, só estamos vivos a Antónia, o Setúbal, o Zé Navarro e eu, também é verdade que as duas biografias mostram um homem mais amoroso do que a sua propalada e lendária incapacidade de compreender e aprender com as mulheres.

Que Norman Mailer é o dessas biografias? Não parece ser o mesmo que na edição do 50.º aniversário do seu “Os Nus e os Mortos”, escreveu no prefácio: “Odeio tudo aquilo que não seja eu próprio.” Esse seria o Mailer da ficção pura. Na vida, conta Norris, a sua mulher, que foi ela que um dia lhe deu um indesmentível murro nos queixos no meio de uma viva discussão.

Se com a última amante e a última mulher só houve doçuras, os seis casamentos de Mailer e a mariana procissão das velas que poderia fazer-se com as suas aventuras de esfuziante adúltero praticante contam outra história. Esfaqueou uma das suas seis mulheres durante uma festa de alcoólico dilúvio, tendo de ser internado numa clínica psiquiátrica. Porém, Norris e Carole insistem: Mailer era quase um mentor, insistia mesmo para que elas escrevessem. E ambas são mulheres com vida e liberdade amorosa própria antes de conhecerem Mailer, Norris foi amante de Bill Clinton, Carole de De Niro, Warren Beatty e Clint Eastwood.

Sem desprimor, quem poderá ter memória tão comovente como a da primeira noite de Carole e Norman? Escreve Carole que ele lhe disse: “Despe essas lindas cuecas. Quero provar a tua alma!”

João Moita, Grande Prémio de Poesia

Escreve-te.

Molda
à martelada
a forma crua
do teu crânio,

remove
com a picareta
as nuvens
dos teus sonhos,

extrai
com o estilete
a necrose
dos sentimento
s,

sufoca
na garganta
o gorgolejo
do teu canto,

e, sobretudo,
não esperes nada
do que amas.

Começa assim, com este poema, o livro “Que Túmulo em que Talhão“. O autor é João Moita. O júri da Associação Portuguesa de Escritores leu-o e deu-lhe o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho, de 2023.

O poeta João Moita, de quem a Guerra e Paz é a editora, destaca-se pela sua contenção, pela forma quase cruel como privilegia a escassez. Toda a exuberância de parabéns e euforia, olhando para a sua poesia, seria descabida. Lê-lo em silêncio talvez seja o devido tributo.

Dois bigodes

São dois bigodes. Estão ali a fazer marcação à zona à bela Jane Russell. Um é o sorridente e sincero bigode do meu amigo Manel Cintra Ferreira que já voou atrás de Jane. O outro é o meu bigode circunspecto, porventura cheio de segundos sentidos.

Para os mais esquecidos, esta senhora, a que eu e o Cintra fazemos de ala dos namorados, é a mesma que está ali em baixo, de vermelho, a comemorar o 38 do glorioso SLB, com a Marilyn. Ou quem a sabe, já a dançar, sedutora, Rumo ao 39.

Paludismo americano

Quem diria ao miúdo que eu era nos anos 60, que um dia também estaria neste drive-in!

Ainda me lembro dos enxovalhados beijos na boca que então dava a Mao-Tsé Tung. Foi ali entre os meus 19 anos e os vinte e meio. Viera de Luanda estudar direito e o maoismo lisboeta de 1973 chamuscou-me – sim, houve um maoismo lisboeta de 73, pincelado a delirantes, esquizóides e disléxicos toques de Sorbonne, Paris VII. O maoismo lisboeta só não conseguiu estrangular o meu vocal e fidelíssimo pró-americanismo.

Vejam como essa serpente yankee nasceu no meu peito: o meu pai, tinha eu sete anos, sentou-me na motorizada NSU e levou-me a ver o consulado americano em Luanda. Acabara de ser apedrejado e os americanos acusados de apoiarem os “terroristas” que, em Março de 61, tinham posto o Norte daquela “Angola é nossa” em agonia. Vi as pedras na rua, o moderado rasto de destruição, e o impávido edifício do Consulado, tão bonito como a desaparecida casa-grande de Dona Ana Joaquina, aristocrata arquitectura luandense agora em extinção. Os meus sete anos apaixonaram-se por esse símbolo de América que ali, sem fugir, dizia verdades inconvenientes.

E tudo à minha volta, um ou outro Chevrolet, as carrinhas Ford, as jeans Wrangler e levi’s, os quedes (ou keds), que eu calçava, tudo era um hino que absolvia a América de culpas. O jovem Kennedy e a sua Jacqueline ajudavam. E depois, quando vi “Chove no Meu Coração”, meu primeiro filme de Coppola ainda antes de saber quem era Coppola, e quando vi “Easy Rider”, sem saber que um dia falaria com Dennis Hopper, os vírus do pró-americanismo ferraram-me uma desalmada febre que nunca mais me largou: o meu abençoado paludismo é filo-americano.

Eis o que então eu achava um caso de súbito analfabetismo da esquerda a que pertencia: o seu anti-americanismo. Aquilo atazanava-me tanto como o ciúme-agulha a esburacar o coração mouro de Othello: como podia a esquerda da liberdade e de um mundo melhor, deslargar-se da livre vida americana, da sua irreverência desengravatada, dos filmes, do rock ‘n rol (ó meu!) dos Doors e Hendrix aos Jefferson Airplane e à sua  Grace Slick, epítome da sexualização, dos gemidos nos drive-in, dos romances de Hemingway, Faulkner e Steinbeck, do pela estrada fora de Keroauc, dos inclementes uivos de Ginsberg, dos apolos a ir à Lua!?

Essa impressiva paisagem era – é que era! – o autêntico anti-salazarismo. Essa planturosa América, estética, inestética, charrada, a litros de Budweiser, com Henry Miller a vazar sexo e plexo na cama e fora da cama, era a garantia de um infarto ao coraçãozito santacombadense da nossa ditadura.

O impulso pol-potense do meu breve maoismo parou aí: eu nunca poderia viver sem essa América que já conhecia sem nunca lá ter ido. O frigorífico que os meus pais tinham na casa caluanda do musseque Sambizanga, era um General Electric, tão americano como Charlotte e Henry, os amantes de “As Palmeiras Bravas”, romance de Faulkner que nos incita ao amor do amor. Ao amor do amor incitava-me também o “Born To Be Wild” dos Steppenwolf, a voz que proclamava sonhos de Martin Luther King, a tragédia de Dallas com a cabeça estilhaçada de John no aflito regaço de Jackie, meu primeiro soluço por um político.

Hoje, que os radicalismos parecem sufocar esse maravilhoso pântano de vida, prolífico, indomável, não sei se ainda existe essa minha América, que tanto era a de John Wayne como a de James Dean, essa América que vinha dos anos 50 de “A Leste do Paraíso” ao começo dos anos 70 de “O Padrinho”. Vamos morrendo, lentos, na morte das paisagens em que se deitava, deleitado, o nosso imaginário.  

Publicado no Jornal de Negócios

Eu conheci Lenine

Eu conheci pessoalmente Lenine. Toda a gente sabe quem é Lenine. Conforme a perspectiva, é o herói ou facínora da revolução bolchevique. Revolucionário de profissão, adoentado e macilento, a pesar-lhe na consciência, logo em 1921, a primeira grande mortandade de milhões seres humanos à fome, ordenante da morte por enforcamento de camponeses, que ficaram dias pendurados nas árvores só para que se soubesse: não foi este o Lenine que eu conheci e de que fui amigo.

O meu Lenine era igualmente macilento, cabelo negríssimo, magro e esquinado. Se se abrisse a frincha de uma porta, o meu Lenine passaria, como uma fina sombra, por essa frincha. Deste deambulante Lenine, fui eu amigo como o advogado dono do escritório de um célebre conto de Melville foi amigo de Bartleby. E havia alguma coisa de Bartleby no meu Lenine. A mesma determinação subtil, inapelável e irrevogável.

O meu Lenine flanava com discreta elegância por Lisboa e todos os caminhos o levavam à Cinemateca. Era um cinéfilo obsessivo e silencioso, uma dessas sombras fílmicas que fogem da tela e circunvagam como zombies no planeta Terra. Que eu saiba, o meu Lenine nunca comeu e nem casa tinha, fundindo-se na noite, nas wee hours de Lisboa, quando as sessões de cinema acabavam.

À deambulação solitária, juntava uma nobre pobreza franciscana. Um trivial saco plástico com antiquíssimas revistas de cinema, algumas folhas amarrotadas de papel, uma amarelada biografia de James Dean, que anotou, confiando-ma para que eu escrevesse sobre os filmes do fatídico actor. Viajáramos juntos, de metro, da Gulbenkian para a Cinemateca, e decidiu que eu era amigo dele.

Confesso, essa amizade foi das mais poéticas honras que tive na Cinemateca. É que, Lenine era implacável a detectar erros. Uma data, o nome de uma actriz gralhado, e ele aparecia do nada, com um suave desdém a iluminar-lhe a palidez, desancando com a negligente certeza de um Bartleby o programador da Cinemateca que errara. Um dia, já eu estava na SIC, os meus ex-colegas da Cinemateca recuperaram um cartaz do filme “Vendaval Maravilhoso”, de que Amália foi a fulgurante estrela. O filme é de Leitão de Barros, o que todos os meus colegas estavam carecas de saber. Mas, por um daqueles terríveis erros de simpatia, na legenda garrafal do cartaz escreveu-se, “um filme de Leitão Ramos”, confundindo o conhecido crítico da nossa praça com o realizador.

Erro de cabo de esquadra, do nada Lenine corporizou-se ao lado do cartaz e quando passou o primeiro programador da Cinemateca, com um pingo de doce desdém, só disse, “Vocês…”, e fazendo a exacta suspensão que Samuel Beckett exigia dos actores às suas reticências, rematou “nem isto”! A forma como virou as costas, o seu andar recto de ponto de exclamação, eram ainda a mais acerba crítica que um cinéfilo poderia ouvir.

Um dia, Lenine morreu. A Antónia Fonseca, cujo parentesco comigo adivinham, soube. Era e é um quadro da Cinemateca, obsessiva adepta de Bogart e do falecido doutor Cunhal. Era director da Cinemateca, o João Bénard. A Antónia irrompe-lhe pelo gabinete e grita: “João, João, morreu o Lenine!” O João, conhecedor da rubra linha política da Antónia, responde-lhe, sarcástico, com um “Haja Deus, Antónia, morreu e já morreu há muito tempo”. “Não foi o meu Lenine, foi o nosso Lenine que morreu”, cortou, com shakespeariana aflição, a Antónia. E a Cinemateca fez luto.

Chamava-se Lenine, era um pálido raio de filme que desceu à terra e cedo, muito cedo, voltou às luzes e sombras que se projectam na escura caverna chamada cinema.