Os milagres de João Bénard

Boa tarde a todos. Quero agradecer ao director da Cinemateca, José Manuel Costa, de quem fui camarada uma dúzia de anos, nesta bela instituição, entre 1980 e 1992, o convite para partilhar convosco as minhas impressões sobre a escrita de João Bénard da Costa.

Sobre a figura do João, sobre a sua aura encantatória, já muito escrevi, e falei até, nesta mesma sala, há uns bons anos. A minha paixão irredutível e incondicional é conhecida, pelo menos daqueles que sabem que eu existo. Ao abrir este livro monumental, a minha paixão, se é que algum dia hibernou, reacendeu-se logo, pondo até em risco de incêndio as mil e uma páginas deste livro. Deixem-me, então, falar do que vi e do que penso.

É logo à página 11. E há de surgir mais vezes nas 999 páginas que os escritos de João Bénard da Costa ocupam neste volume 5. O que surge é o filosófico espanto de João Bénard com o milagre.

O João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme “A Boceta de Pandora” e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.

Oh meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.

Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard fala de “milagre” e explica que o milagre de Brooks, o milagre de Lulu, são planos e cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber – e eu repito, “percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber” – sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza cristã, católica mais precisamente.

E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.

A escrita de João Bénard é sempre boa, mas ainda é melhor quando o anima essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, feliz, erótico muitas vezes.

O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.

E já voltaremos ao milagre e ao catolicismo bénardiano.

Neste livro, à página 13, ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar do “Diário de uma Mulher Perdida”, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.

O João está a falar da sequência de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks e diz que dessa actriz, do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”. 

A escrita de João Bénard é, como se pode perceber, não uma escrita dicotómica, mas uma escrita fusional.

Fusão de todos os desejos, busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão nessa divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.

E deixem-me juntar ao catolicismo de Bénard uma outra influência ou sombra tutelar. A esse catolicismo, a meu ver com mais cambiantes do padre Teilhard de Chardin do que Emmanuel Mounier, – e digo isto como vingança, porque fui leitor encantado, na adolescência, de Chardin, e sempre me irritou Mounier – João Bénard tem uma desvairada e amorosa empatia com Jorge de Sena.

Jorge de Sena foi a improbabilíssima síntese de um filosófico humanismo cristão, de um lado, com uma admiração por Marx, do outro, o que fez dele um marxista, mas um marxista estranhamente sempre em luta, de Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, com o partido comunista.

Poucos intelectuais portugueses o partido comunista terá detestado tanto como Jorge de Sena.

Que eu saiba esse partido, de simpática festa anual na Atalaia, Amora, Seixal, dedicava uma semelhante acrimónia ao João, embora mais discreta.

Mas o que me interessa focar é uma semelhança geracional na estratégia de escrita nos textos ensaísticos de Jorge de Sena e nos de João Bénard. Como em raros casos na crítica e historiografia de cinema, a escrita e o pensamento de João Bénard exibem um comparativismo que roça ombros com o modelo seniano. Se Sena era uma mestre de literatura comparada, Bénard é um mestre do cinema comparado.

Vejam ou leiam, por exemplo, o que o João escreve sobre o “Accatone”, de Pier Paolo Pasolini. Aqueles olhinhos piscos do João parecem, como os olhos de Sena, os olhos poliédricos de uma mosca, que tudo alcançam em 360 graus.

Os olhinhos de mosca do João começam por entrelaçar as pernas de Pasolini e de Visconti, e aí está o João a mostrar que há em “Accatone” vislumbres do “Rocco e Seus Irmãos”, que há, no “Accatone” citações do “Ossessione”. E depois, O João põe Pasolini de mão dada com Jean-Luc Godard.

O João pede ao Godard se não se importa que ele sobreponha o plano da morte do protagonista de “Accatone” ao plano da morte de Belmondo no “A Bout de Souffle”. E eu sei, resquícios do meu velho e esquecido cristianismo, que o turbulento Godard foi agora lá acima, de propósito, de Jean-Luc para João, dizer-lhe que não se importa e até agradece.

Ó mas se fosse só isso. Logo a seguir, o João já está a olhar para os enquadramentos pasolinianos, vê os anjos de pedra, a composição dos “grupos de família”, as casas esventradas, os pés e os corpos de homens em luta numa rixa.

O olhar do João cola-se a esta multiplicidade caótica, quer dar-lhe uma unidade estética e, com a sua vocação nada maniqueísta, confunde e funde Pasolini com a pintura do final de trecento e do princípio de quatrocento, para depois, naquela sua vontade de “deixa-te lá de meiguices”, arriscar a provocação, chamando os génios de Giotto e Masaccio em seu auxílio, tudo culminando na erotíssima identificação de Accatone, o protagonista de Pasolini, com o “Cristo Morto” de Mantegna.

Ou seja, a hiperbólica pulsão comparativista, só ao alcance da grandessíssima erudição, só ao alcance do universalismo, só ao alcance do não-fundamentalismo, é o poderoso cordão umbilical que liga Bénard a Jorge de Sena.

Sei do que falo. Nesta mesma Cinemateca, era eu um dos meninos da programação de João Bénard (e mesmo que os meus queridos amigos José Manuel Costa e João Lopes, me chamem um lambe-botas, direi sempre que eu era o mais bénardiano desses inocentes aprendizes, até por que eles já tinham um estilo próprio e eu nunca tive estilo nenhum) … mas então, o João chamou-me e mostrou-me um camião de caixotes com papéis de mil comunicações. Eram as apresentações que, nos anos 50 do século passado, ingentes intelectuais portugueses tinham feito dos filmes das 3.ªas feiras Clássicas no Jardim Universitário das Belas Artes. Mandou-me organizar aquele material. Aguenta-te M.S. Fonseca.

Tive uma ideia brilhante e que marcaria o resto da minha vida: publicar aquela montanha de comunicações por autores e começar por Jorge de Sena. Na verdade, a ideia brilhante não foi minha, limitei-me a adivinhar o que o João queria.

E até o que o João já fizera no Tempo e o Modo. E é, por isso, que hoje sou editor de Jorge de Sena.

Agora mesmo vou editar um pequenino livro, um ensaio chamado “Amor”, que nunca foi publicado em edição individual, só em antologias.

Não digo isto para vos vender esse livro – peço-vos desculpa, mas tenho de mostrar ao João Bénard a capa desse livro do Jorge de Sena para partilhar com ele o meu puro gozo. João, aqui está a capa: obrigado por me ter ensinado a fazer livros.

Peço desculpa por este momento de assédio erótico, mas este livro, “Amor”, é, para a manifestação do erotismo e da sexualidade na literatura portuguesa, um livro que poderia ser de João Bénard da Costa. Nele se encontra, além da literatura, como nestes escritos do João além do cinema, a história das ideias, a histórias das religiões, a pintura, todas as outras artes.

Por total empatia com Jorge de Sena, empatia geracional, empatia intelectual e filosófica, no João há uma vontade de estetização do mundo.

Na literatura, Sena quis limpar a língua portuguesa do sarro neo-realista, do miserabilismo, das palavras com cueiros, erguendo a língua literária a uma ambição universal, disparando convictamente contra esse espantalho simplista que pretende que a “arte deve representar realisticamente a sociedade”.

Os textos de João Bénard sobre cinema são a gloriosa expressão da mesma luta. João Bénard santo guerreiro contra o dragão da maldade, nos seus textos concretiza uma magnífica e pasmosa, como ele gostava de adjectivar, objectificação estética dos ideais, essa objectificação que as almas espantadas, inquietas e insatisfeitas perseguem, buscando ideais de sonho, ideais de harmonia, ideais da mais cândida ou pungente erotização. E essas almas espantadas, inquietas e insatisfeitas são as de todos os que estamos nesta sala, a minha e as vossas.

Disse tudo isto, mas ainda só estou na letra P deste 5.º volume. Dou um grande salto, para a página 226, já na letra R, e eis que à cristianíssima adoração do milagre, que faz de Bénard um irmão de espírito de Dreyer, a esse milagre se junta o amor e a emoção, com a condição, a exigência, de que a emoção possa ser tanto física como espiritual ou as duas coisas ao mesmo tempo.

A “Johnny Guitar”, letra R, de Ray, Nicholas Ray, o comparativista João Bénard chamou “A Imitação de Cristo” dos cinéfilos, e eu nem me atrevo a tocar no corpo amado de Johnny Guitar, corpo que só se incendeia ao olhar e à delicada língua do João.

Escolho da letra R, a cena que é para mim a mais bonita de todo o cinema de Nicholas Ray: Mitchum, herói de rodeos, agora coxo, abandona as arenas, os cavalos e…, começa a cena, vêmo-lo a chegar a uma casa abandonada. Rasteja para debaixo da sacada da casa e tira uma caixa velha onde escondera, em miúdo, uma pistola, um livro, uma revista e dois níqueis. Mitchum, o coxo e vencido Mitchum, rasteja para a sua infância numa cena tão comovente como solitária: nos escritos, tantos escritos de Bénard, eu vejo o João a rastejar em busca da mesma memória consoladora da infância, em busca desse calor que um dia ele terá escondido debaixo da casa, debaixo da cama, para poder voltar mais tarde a essa memória, a esse calor, um calor que talvez seja o calor da sua Arrábida, calor que ele transportou e tanto amou e tanto chorou em “How Green Was My Valley”.

E volto aos milagres, a essa inundação de milagres que ensopa a página 923 e seguintes.

São os milagres de cada filme de Rossellini, de “Il Miracolo” a “Viagem a Itália”.

Na pg 946, na “Viagem a Itália”, em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, Rossellini filma a estarrecedora reconciliação de George Sanders e Ingrid Bergman: milagre, também.

O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes da objectificação estética dos ideais se riem, está o João a chorar. Lendo-o, neste volume 5, voltei a chorar com ele.

Julgo que o João Bénard andou toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor – porque o João é um portentoso escritor – o João andou à procura de um milagre, o milagre da verdade que cega. Uma verdade que cega, que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. O João encontrou a verdade.

Eis o milagre que cada texto de João Bénard da Costa soletra: nos textos do João percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível.

E é nessa solidão, nessa intimidade do deserto, a mesma que vamos já ver, a seguir, no “Bitter Victory”, que é bom ler o João. E o João conduz-nos ao que há de mais essencial, à contemplação e devoção. Cito o que o assombrado Godard disse, depois de ver o “Bitter Victory”:

“O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual a importância disso, quando olhamos as estrelas?”

Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.


Manuel S. Fonseca
Lisboa, 5 de Março de 2023

2 thoughts on “Os milagres de João Bénard”

  1. Eu tenho os volumes que já saíram dos escritos de cinema; ainda não li todos, são para ir lendo nos intervalos de outras leituras: são um dicionário do cinema ou melhor, uma enciclopédia. Aliás, as únicas folhas dos filmes da Cinemateca, que continuo a frequentar desde 1968, com alguns intervalos e que colecciono são as do Bénard, sem menosprezo das suas ou do Manuel Cintra Ferreira.

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  2. Obrigada ao Manuel e a João Bénard por esta prosa que nos diz algo dos dois e onde subentendemos isso que é indizível e existe mais que todo o dito.
    Um abraço

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