Sócrates: afecto ou amor antigo

Não sei se lhe chame afecto ou amor antigo. Mas foi por isso, por afecto ou amor antigo, que nasceu esta edição.

Quando regressei da Angola independente, cumprida a aventura anarquista que se requer aos 20 anos para que aos 40 se chegue filosoficamente a chefe de bombeiros, regressei à Universidade. A bem dizer, atravessei a rua.

Tinha frequentado, antes do 25 de Abril, a Faculdade de Direito, era Marcelo um jovem assistente. Agora, as carruagens das revoluções arrumadas na garagem da História, atravessei a alameda, em que vira – tantas tardes! – a polícia de choque a derreter dentro das carrinhas azuis, e fui matricular-me em filosofia. Foram quatro anos que combinaram uma saborosa excitação com alguma requentada e rotineira sopa académica. Do lado da excitação, dois professores, José Gabriel Trindade Santos e Manuel S. Lourenço. As aventuras que me propunham, incertas, paradoxais, de uma feliz irrupção do novo a partir de cavernas antigas, fizeram-me renascer. E deixem que me concentre na parteira que foi Trindade dos Santos. Foi, para começar, meu professor de Filosofia Antiga, mais tarde de História e Filosofia das Ciências. Ensinou-me que estudar Filosofia é ir aos textos. Lê-los, interpretá-los, discuti-los.

Este foi o primeiro de todos os textos, a Apologia de Sócrates, esse discurso de defesa de um homem de 70 anos que vai ser condenado à morte. Nesse discurso, o filho de uma parteira e de um entalhador de colunas de mármore, declinava o princípio de toda a filosofia: o não-saber, como agora me volta a ensinar o José Gabriel.

“Não julgo que sei o que não sei” e é esse todo o saber de Sócrates, saber suficiente para fazer dele o mais sábio dos homens, segundo a o oráculo de Delfos. Princípio ainda mais válido hoje que sabemos não saber ou conhecer 95% da massa do Universo.

Quis, agora, como editor, regressar a esse núcleo primordial da filosofia e quis fazer eu mesmo a peregrinação das pedras, traduzindo – de versões inglesas, francesas e espanholas – o discurso que Sócrates fez durante uma tarde, em Atenas. Traduzi e escrevi um texto inicial de enquadramento. Esta é uma versão da Apologia que não pretende ter, nem assume qualquer vocação académica. O que quero oferecer é um texto fluído e atraente, com total respeito pelo original, e um comentário que ajude a compreender o contexto histórico, político e filosófico que rodeou esse julgamento que inspirou um discurso de defesa que, num momento tão traumático como poético, transforma a morte de um homem no nascimento do pensamento livre, individual, a que chamamos filosofia.

Esta foi para mim, já disse, uma aventura amorosa, um reencontro e uma homenagem, à minha maneira, a um velho professor que continua, hoje no Brasil, a sua aventura pedagógica. Para os leitores são estas as razões e os desafios que justificam ler já este livro:

– Nesta Apologia, que Platão verteu para a escrita, estabelece-se o primado da razão como guia do pensamento humano, recusando outras formas de autoridade, sejam elas o preconceito, a tradição ou a invocação do sobrenatural;

– Sócrates mostra que a aventura do pensamento é uma exigente aventura individual, de inteira e incorruptível liberdade individual, em que o exame dos pretensos saberes que se nos apresentam é essencial, não se podendo aceitar nenhuma forma de magistério não examinado;

– Sócrates leva-nos pela mão a reconhecer que o conhecimento é a alma de uma vida autêntica.

E eu juraria que este é um livro, dois milénios e meio depois de ter sido escrito, que se lê com prazer, com sobressalto, com emoção.

Que estes excertos possam suscitar a vontade de lerem tudo:

Apologia de Sócrates

4 thoughts on “Sócrates: afecto ou amor antigo”

  1. Siga-os, Manuel. Siga sempre os afectos socráticos. Mau grado o senhor (ele, sócrates) pensar que são perturbadores da clareza do pensamento, enfim, que se há-de fazer. É que há nebulosas muito convenientes. E bonitas. E tal.
    E viva a Apologia. De Sócrates. E a Sócrates.
    Tenho dito.

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  2. Foi graças a esse livro que passei na oral de admissão à Faculdade de Direito de Lisboa, em 1967.Gratas recordações.

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