Histórias que os filmes não confirmam nem desmentem, parte 2

Histórias que os filmes não confirmam nem desmentem,
antes pelo contrário, parte 2

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[continuação da Parte 1]

E agora deixem-me descambar um bocadinho. Estou para aqui com um paleio de narrativa, Dantes e Homeros, como se tivessem enfiado por mim acima com um pináculo de torre de marfim. Peço desculpa por isto do pináculo, mas é o que me teriam dito os meus camaradas do blogue Escrever é Triste, Pedro Norton e Diogo Leote, que aqui estão, se eu lhes tivesse mandado o texto antes. E o meu Triste camarada Pedro Norton acrescentaria, “deixe-se lá de mariquices e conte mas é como é que fizeram o filme”.

Sim, afinal, quem fez este filme e como se fez este filme? As filmagens de A Desaparecida era uma cambada de gajos, um acampamento ecuménico de escuteiros, cow-boys e índios, mexicanos e americanos. Ford filmava as cenas de fuga e perseguição de cavalos e cavaleiros com a câmara em cima das mesmas carrinhas americanas, Ford e Chevrolet, em que eu andei, atrás, na caixa aberta, de monangambé, na minha Luanda colonial.

Um dia, John Wayne encontrou a chorar, na sua tenda, Beulah Archuletta, a actriz índia que no filme se casa acidentalmente com o sobrinho de Ethan. Ela contou-lhe que o seu filho, da vida real, se ia casar e ela não poderia assistir à cerimónia por ter filmagens. Comovido, Wayne, conseguiu suspender a rodagem do filme e levou-a, no seu avião, ao casamento na Califórnia. Os índios passaram a chamar-lhe “O Homem da Grande Águia”.

Não foi neste filme, foi em Mogambo, mas também tenho direito a aldrabar um bocadinho: um dia veio um produtor atazanar a mona a John Ford, dizendo que ele estava atrasado três dias nas filmagens. E ai, o meu dinheirinho, como é que é, você pensa que isto é subsidiado pela Gulbenkian ou quê?! Ford deve ter mudado a pala do olho direito para o esquerdo, que foi a forma de nem ver o patético contabilista ou lá o que era. Agarrou no guião, no script, contou, uma, duas, três, quatro páginas, rasgou-as e virou-se para o patrãozinho: “Prontos. Já estamos dentro do prazo outra vez.” E, nesse filme, Ford não filmou mesmo as cenas que rasgou do script, prova insofismável de que nenhum filme confirma ou desmente a sua própria história, antes pelo contrário.

Na Desaparecida, e foi mesmo na Desaparecida, Ford foi mordido por um escorpião e levaram-no, de aflitos, para dentro de uma tenda. O senhor da massa ficou aflito, “e se o Mestre morre, que é que a gente faz? Temos aqui enfiada uma pipa de dólares”. John Wayne ofereceu-se para ir ao improvisado hospital ver o que se passava com Ford. Foi, viu e lá volta ele, naquele passo bêbado, e diz: “Tá tudo bem, o homem está fixe. Quem morreu foi o escorpião.

Bora lá, ponham um pé no escorpião de Ford e venham comigo até Casablanca. Acho que foi por alturas do referendo do Brexit ou não sei se foi na votação entre Trump e Hilary, mas fosse em que altura fosse, votou-se também a escolha do melhor argumento, do melhor script, de sempre. Ganhou Casablanca.

Para que conste, a autoria desse argumento é muito disputada. Assinam-no dois irmãos, Julius e Philip Epstein, mas reclama-o também Howard Koch. E embora não reclame coisa nenhuma houve um tipo, Casey Robinson, que afinou, poliu e reescreveu ou criou de raiz muitos dos maravilhosos diálogos a que só apetece dar beijinhos ufanos e humedecidos.

O filme foi adaptado de uma peça que ainda ninguém tinha levado à cena. Os manos Epstein iam começar a escrever-lhe o argumento, mas a missão patriótica de escrever o filme Why We Fight, de Frank Capra, documentário que justificava a entrada da América na II Guerra, pôs o argumento de Casablanca na mão de Howard Koch, conhecido por ter feito, na rádio, A Guerra dos Mundos com Orson Welles. Os manos voltaram um mês depois e tomaram conta da loja. Dizem que deitaram fora tudo o que Koch escreveu, fazendo eles um tratamento, com o alinhamento das cenas, e a rodagem arrancou com o script a ser escrito, às vezes no dia anterior às filmagens. O famoso final do filme foi mesmo improvisado no último minuto. Ou seja, isto faz de Casablanca praticamente um filme português do chamado “cinema novo” ou uma obra fracturante da nouvelle vague.

Mas vamos ao filme. Sem querer enfiar apela garganta abaixo, seja de quem for, a minha nervosa e obscura teoria grega de um cinema todo feito de Ilíadas e Odisseias, não resisto a chamar Aquiles a Humphrey Bogart.

Tenham lá paciência, mas Bogart é um Aquiles. Homero emprestou a Aquiles uma ira famosa, tremenda e tremente. Essa ira aquiliana vestiu em Bogart o fatinho branco, de civilizado lacinho, do handsome dono de um bar.

A ira de Aquiles metida no corpinho de um americano de meia-idade transformou-se em cinismo, um cinismo muitas vezes delicioso, mas um cinismo de quem decididamente abdicou de lutar, o cinismo de alguém descrente e sem ideais. Dou-vos um exemplo.

Que herói é este Bogart que entrega aos bichos a fraca figura de Peter Lorre, mesmo sabendo-se que Lorre é um escroque, que faz dinheiro a fingir que quer salvar refugiados com os seus salvo-condutos?

Que Aquiles é que Bogart engoliu e o deixa direito como quem engoliu um garfo, recusando arriscar o pescoço por um desgraçado, tal qual Aquiles recusa a sua espada e o seu resplandecente escudo aos seus irmãos aqueus, indiferente ao rio de sangue da carnificina causada pelos troianos à solta?

A Aquiles, num conluio indigno, roubaram-lhe a escrava Briseida, que já o amava e que ele amava. Que amor roubaram a Rick Blaine, o Bogart de Casablanca? Aos 20 minutos de filme, com a devida licença dos argumentistas e dos acordes de As Time Goes By, saberemos que foi Ingrid Bergman, pelas mais nobres razões e por escolha sua, que feriu de morte o orgulho viril de Bogart.

Ela escolheu Paul Henreid – talvez nem o tenha escolhido por amor, mas por essa admiração que, na sua nobreza e fidelidade à cidade, na sua bravura anti-nazi, fazem de Paul Henreid um Heitor!

A perda do amor transforma Aquiles e Bogart em lagartos, bichos de sangue frio, atirando para fundos subterrâneos a virtude guerreira que é a natureza mais profunda e autêntica deles. Até um dia! Porque há sempre um dia em que essa natureza volta e emerge, esplêndida, irresistível. E, às vezes, tudo começa por um sinal, por um simples acenar de cabeça, como o gesto de aquiescência, que nos empolga nesta cena arrebatadora em que, como se fossemos meninos, voltamos a acreditar no triunfo do bem, do belo, do bom.

Como sabem os que se lembram ainda bem do filme, aquela mulher que canta em estado de pura exaltação místico-patriótica, as lágrimas a saltarem-lhe o dique dos olhos, é, em Casablanca, uma prostituta suave.

E eu julgo que esta cena lava, a todos os espectadores, todas as culpas e todos os pecados, os da carne e os do espírito, lava os pecados cometidos por palavras, obras ou omissões. Nesta cena, na pequenina história que nela se tece e canta, toda uma comunidade de ratos que fazem pela vidinha, intrigando e traficando, recuperam a dignidade. Em três minutos de miraculoso cinema.

E há outra história por trás desta história. Na verdade, os nazis deviam estar a cantar o “Das Horst-Wessel-Lied” (já sei, Rita, minha filha, que o meu alemão é miserável, escusas de fazer essa cara), dizia eu que deviam cantar o hino oficial do partido de Hitler e, na altura, segundo hino do Terceiro Reich.

Mas os manos Warner, donos da Warner Bros, descobriram que o raio do hino tinha direitos. Mudaram do hino para a canção que ouvimos, recusando a ideia absurda de serem processados pelos nazis e ainda terem de lhes pagar direitos para que o filme fosse exibido.

Já agora, fique aqui registada outra história fora da história: os nazis que ali estavam a cantar obviamente são tudo menos nazis. Conrad Veidt era casado com uma judia e, veemente anti-nazi, fugiu da Alemanha aplicando parte da sua fortuna no auxílio de guerra aos britânicos. Os outros oficiais eram judeus alemães que escaparam a Hitler. A reacção à cena depois de feita foi de exuberante felicidade. O ambiente das filmagens era, aliás, para muitos dos secundários fugidos a Hitler, fervoroso e militante, por ser o primeiro filme de Hollywood abertamente anti-nazi.

E a propósito de anti-nazis e alemães em fuga, chamo aqui, para o meio de nós, Billy Wilder. Há dias, numa espécie de segundo referendo que o Brexit não teve, fez-se uma consulta só a argumentistas de elite para se eleger o melhor de sempre na profissão.

Elegeram Billy Wilder, esse austríaco que pronunciava cada palavra inglesa com os pés, mas que tinha ideias e sacava diálogos de uma afrontosa originalidade, para não dizer virgindade.  Ninotchka, um filme de Ernst Lubitsch, foi uma das obras-primas que ele escreveu. Deram-lhe um mote: “Jovem russa impregnada de ideais bolchevistas vai para a assustadora, capitalista e monopolista cidade de Paris. Apaixona-se e passa uns dias de gozo do caneco. Talvez o capitalismo não seja assim tão mau.” Desta ideia, Wilder sacou Ninotchka.

Vamos ver a cena da chegada, a uma gare de Paris, dessa rapariga, Ninotchka, a que Greta Garbo emprestou os dez réis de figurinha que tinha. Na gare estão à espera dela três camaradas soviéticos, já inclinados a essa condescendência social-democrata com que uma certa dirigente do Bloco de Esquerda recentemente assombrou o mundo.

Há qualquer coisa de mortaguiano no primeiro contacto da camarada Greta Garbo com um representante dessa espécie chauvinista, arrogante, machista, que é o aromático burguês de infeliz produção capitalista, que vamos já ver.

Como se fosse numa inapelável sessão parlamentar, Greta Garbo disseca o bicho e expõe, com uma imbatível lógica escolástica, as misérias que o lacinho de seda, o belo chapéu, o delicado fatinho, procuram esconder. Veja-se como Greta Garbo desfaz a miséria do capitalismo.

Verifiquei, com certa surpresa, tão justa é a previsão do fim do chauvinismo capitalista, que o filme foi, ao tempo, proibido na solar União Soviética, onde julgo que nada era proibido.  Palpita-me que a culpa foi das palavras que Wilder pôs na boca de Ninotchka, depois dela experimentar uns apaixonados french kisses arrancados aos lábios e língua do execrável e perfumado burguês, beijos acompanhados por umas flûtes desse borbulhante champagne, que faz a glória da França, curiosamente a única etílica libação que a minha mulher, a revolucionária Antónia, consente. E diz Ninochka, de olhos postos no amado burguês e na taça de champagne: “Estou tão feliz. Oh, que feliz que estou. Ninguém pode estar tão feliz sem ser castigado. Vou ser castigada. Tenho de ser castigada.

O castigo de Billy Wilder foi saltar dos braços de Greta Garbo para os braços de Marilyn Monroe. Foi um salto de vinte anos, de 1939 para 1959. Escreveu, com I.A.L. Diamond, e realizou ele mesmo Some Like It Hot. A ideia do filme era simples: meter dois músicos homens travestidos numa orquestra de mulheres sem que, num espírito BPN ou BES, ninguém se apercebesse, tirando partido dos mal-entendidos, equívocos e trapalhadas de lingerie, com a cumplicidade de sutiãs, négligés, cuequinhas de renda, afagos e abraços femininos, que a situação certamente ia originar.

Primeiro, para justificar a ida dos músicos para a orquestra feminina, Wilder pensou numa situação tipo troika, crise económica colheita 2011, um desemprego monocasta de alto lá com ele, e os músicos a tentarem engatar a primeira oferta que lhes aparece.

Mas depois veio-lhe a palavra mágica à cabeça: gangsters! Palavra obviamente inaplicável aos casos BPN, BES ou Lehmans Brothers. Os dois músicos iam parar à orquestra feminina, por estarem a fugir de um bando de gangsters, depois de terem testemunhado um massacre igual ao do dia de São Valentim.

Entram na orquestra e Marilyn logo se converte na melhor amiga deles, ou delas como queiram, confessando a Tony Curtis a alegria de encontrar uma saxofonista mulher, porque os saxofonistas homens por quem se apaixonara, acabavam sempre por fugir, deixando-lhe na boca, nas suas imortais palavras, o gosto do seco pauzinho do chupa-chupa.

Bom, há um amigo meu que diz que se as coisas ainda não estão bem é porque ainda não acabaram. No fim de Some Like It Hot tudo acaba surpreendentemente bem.

A réplica final do milionário Osgood Fielding III, interpretado pelo intrépido actor secundário Joe E. Brown, é um abençoado acaso dos Távoras, se na vida dos Távoras tivesse havido alguma bênção.

“Nobody’s perfect”. Wilder e o seu amigo Diamond escreveram essa frase com a mesma convicção com que, depois destas últimas eleições, António Costa se sentou à mesa com Catarina Martins para renovar a geringonça. Disse Wilder: “Deixa ficar enquanto não arranjamos melhor!” Ficou, e ficou para a eternidade.

Por aqui se vê quais são as melhores histórias das histórias que os filmes contam. Para seu epitáfio, e numa auto-homenagem, Wilder não resistiu a plagiar-se a si mesmo: “I’m a writer, but then nobody’s perfect.

E há a história de Marilyn. No filme, Marilyn chamava-se Sugar, e para ronronar como só ela ronronaria a simples frase “It’s me, Sugar”, Wilder teve de filmar a cena 47 vezes. Desde “Sugar, it’s me” a “It’s Sugar, me” e “Me, it’s Sugar”, Marilyn não acertava com a réplica. Com um ataque de nervos a roer-lhe a cabeça, desatava a chorar e lá se ia a maquilhagem.

Wilder escreveu a frase “It’s me, Sugar” na porta a que Marilyn batia, como escreveu depois, em todas as gavetas em que Marilyn teria de ir buscar uma garrafa de bourbon, a frase “where’s, the bourbon”, que Marilyn trocou por “where’s the bottle” “where’s the whiskey” ou where’s the bonbon”, e que ela só conseguiu dizer certo após 59 repetições. Marilyn disse a frase de costas, oferecendo o esplendor do seu posterior à câmara – talvez Billy Wilder a tenha dobrado.

Milagre do cinema, esse inferno das filmagens não está no filme. O que está no filme é uma Marilyn que transforma Some Like It Hot numa obra-prima, ensinando-nos como é que uma mulher dança a sua sexualidade a passos de ingenuidade, ironia, sinceridade, candura e fé. E eu estou disposto a desafiar para um duelo à pistola o céptico, incréu e vagamente míope Pedro Norton, se ele vier aqui, todo Rita Pereira e anti-Marilyn, dizer o contrário.

[continua]

5 thoughts on “Histórias que os filmes não confirmam nem desmentem, parte 2”

  1. Um post em três actos. E qual deles o melhor. Estou até com pena de ir ler o terceiro porque logo se acaba. Vou deixá-lo em lista de espera.

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  2. (podia parar de comentar… mas é uma maravilha este conjunto de textos, faz com que diga para mim mesmo, que é impossível haver quem não goste de cinema… mas depois lembro-me que há pessoas que não gostam de cozido à portuguesa)

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