Eyes wide shut

avião

 

Contaram-me este conto e já se sabe que quem conta um conto…

Estou há cinco minutos de olhos fechados. Numa boca do fogão ferve a água de uma panela com batatas e uma couve. A couve lombarda demora mais a cozer e já estava ao lume dez minutos antes de ter juntado as batatas.

A casa está calada e a rua num silêncio que os vidros duplos das janelas reforçam. Mas passam aqui por cima muitos aviões e, claro, cada um que passa estilhaça a calma das sete horas da tarde. Passa agora outro e lembro-me que a couve lombarda é de cultura biológica. Digo isto, não porque seja importante ou tenha alguma relação com o avião, mas apenas para sublinhar, agora que o estrondo do avião que passa apaga a esperança de outros sons, que tenho uma panela com água a ferver ao lume. Aliás, as batatas são também de cultura biológica. Hei-de grelhar, depois, uma posta aberta de garoupa. Quando se está de olhos fechados, pensa-se em tudo e é com uma irritação fútil e descabelada que o preço do quilo da garoupa insiste em impor-se-me. O quilo da garoupa à posta está a 48€, embora seja provável que no mercado de Benfica se consiga a melhor preço.

Quando fechamos os olhos, os pensamentos ficam muito claros e distintos, embora se lhes desorganize a hierarquia. Tão depressa estamos a pensar na existência de Deus, como no gato que apareceu, intempestivo, nas escadas das traseiras durante uma semana. Primeiro não lhe liguei, mas era um gato muito jovem e deve ter caído de um dos ramos altos. Os muros, tão inóspitos, não o deixaram voltar a casa e, em poucos dias, já estava magro e trazia nos olhos uma abatida sonolência. Comecei a dar-lhe de comer. Comprei um saco de comida seca e outro com um miminho de comida húmida.

Estava a dizer que, de olhos fechados, se pensa muito na existência de Deus. Mas só por absurdo é que se consegue ir muito além da sensata conclusão de que ou Ele existe ou não existe. A tendência, sempre que, como agora passa um avião é pensar que Ele existe. Por outro lado, se há coisa de que não tenho dúvidas é da alergia que tenho a pêlo de gatos e cães. Tive de mandar vir uma organização amiga dos animais recolher o pobre do gato. Apanharam-no no terraço. Sei que há, no terraço, uma fenda que nunca se conseguiu encontrar e por onde se infiltra a água que, nos dias de muita chuva, cai, pingo a pingo, na casa de banho de serviço. Não há nada pior do que um barulho rítmico. É um som que não suporto.

Não ouço só a água em ebulição. Deixei lá dentro, na sala, o telemóvel a carregar. O nítido plim do Messenger avisa-me de que alguém me mandou um recado. Não me mexo, concentro-me e sei que deitei, ponho sempre, um fio de azeite na água em que cozo a couve e as batatas. E ainda me chega um invasivo e agreste segundo plim do Messenger antes de outro avião passar a descer para o aeroporto. Penso que se me concentrasse nos aviões como me concentro na panela de batatas, conseguiria distinguir o som de um Airbus ou de um Boeing, talvez até as subtis diferenças que há, por certo, entre os aparelhos da KLM, os da TAP e os da British Airways.

Se abrisse a janela ouviria os pássaros a chilrear nas árvores das traseiras. Há ali um grande jardim de um palacete e, no começo da manhã e ao fim da tarde, as árvores enchem-se de vida. São sete da tarde e os impecáveis e impiedosos vidros duplos separam-me tanto de Deus como da música dos pássaros. Mas dei conta que arrancou agora o frigorífico. É um Smeg, quase que lhe ouço a cor vermelha. Tem um sistema de frio: estático no congelador, ventilado para o refrigerador. Em boa verdade o que me interessa é que tem quatro prateleiras e 1,51 m de altura. É quase música o som suave do seu ciclo de trabalho.

Não é que eu não goste de música e peço que não me levem a mal, mas quando fecho os olhos desligo tudo, música, rádio e  televisão. De olhos fechados, prefiro ouvir a madeira de um móvel que estala, os sapatos no andar de cima, um grito na rua. No escritório em que trabalho são as sirenes das ambulâncias e as da polícia. Um colega mais viajado diz que é a nossa little New York, mas talvez seja só ele a fazer-se interessante. Em todo o caso, é raro eu fechar lá os olhos. Há coisas que não são para ali chamadas.

Dizia eu que gosto dessa música aleatória que a casa toca quando fecho os olhos. O fogão e o telemóvel, os aviões e os pássaros, uma árvore que range, uma descarga de autoclismo se encostar os ouvidos à parede. E, quando o silêncio é denso como uma fatia de pão barrada a manteiga de amendoim, chego a ouvir a música do meu corpo, uma pequenina floresta de sons agudos dentro da cabeça, o solo de bateria do coração, os borborigmos entre o estômago e o intestino, culpa do glúten que não consigo evitar.

As batatas já devem estar cozidas. Tenho de ir espetar-lhes um garfo. E tirar do frigorífico a posta de garoupa. Hei-de deitar um fio de azeite no grelhador, flor de sal qb na carne rosada da garoupa. A alegria breve de um copo de vinho branco. E não vou comer pão. Abro os olhos, foge o silêncio, regressa o tempo e acorda a casa. Virão mais tarde os aviões da noite.

1 thought on “Eyes wide shut”

  1. E que agradável foi assistir à pretensa confecção do jantar. Que primeiro foi a experiência e depois a descrição. Ou só a descrição do que não houve.

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