Agustina é para homens

Retomo os textos que publiquei ao longo destes anos sobre Agustina. Esta é uma crónica publicada na revista Epicur, há dois anos, se bem me lembro.

Agustina

Numa insofismável prova da insensibilidade literária de Deus, Agustina Bessa-Luís não escreve há mais de uma década. Agustina decidiu e o iliterato Deus deixou. A última vez que Agustina escreveu, escreveu para mim um livro, Fama e Segredo da História de Portugal, cheio de histórias da nossa História, que começavam em Viriato, passando pelo milagre que abriu as pernas a Afonso Henriques, até a um clandestino namoro de Salazar. Acabara, creio, A Ronda da Noite, seu último romance, e escreveu aquela obra que lhe encomendei, ou então escreveu as duas em paralelo.

Lembro-me que noutro livro de que fui editor, O Livro de Agustina, sua autobiografia, a minha autora contava o que fizera, uma vez, aos três anos, em Espinho: “… saí do hotel, sozinha, com um vestido de voile azul-claro e um ar de grande aventura. Tenho ainda essa aspiração de caminhar sem rumo, dizem que é um fio de epilepsia. Talvez seja, talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico.”

Há mais de dez anos que a vejo sempre assim. Imagino-a nesse adolescente vestido de voile azul-claro, sentada debaixo da grande árvore da casa do Gólgota ou a caminhar sem rumo pelo jardim, deixando-se levar pela indecifrável liberdade a que ela chamou sintoma epiléptico.

Nós, os homens, e estou mesmo a falar de os homens por contraposição a as mulheres, até para contrariar a iliteracia do Deus que a autorizou a não escrever, devíamos ler mais Agustina. Uma vez, ela contou-me que um dos nossos ingentes políticos lhe protestara a maior admiração, concluindo: “A minha mulher leu todos os seus livros.” Com insidiosa ironia temperada pelo sentido das conveniências, Agustina riu-se – ria-se sempre e ria-se de tudo: “Ora, eu gostava era de ter a sua opinião, não digo sobre todos, mas ao menos sobre um dos meus livros.”

O pedregulho salazarista

Donde vem a resistência masculina à leitura de Agustina? E o mais certo é eu estar a deixar-me levar pelo entusiasmo dos grandes contrastes: talvez nem haja uma tão absoluta resistência masculina, talvez haja só uma certa resistência masculina. O que existe é uma certa resistência política, herdada dos tempos do salazarismo, quando os comunistas, através do seu exército neo-realista, ditavam à intelligentsia cultural o que era literatura. Não pensem que acabou, hoje há um diktat da esquerda alternativa que aperta o pescoço e esganiça a linguagem, o pensamento e os comportamentos… Mas deixemo-nos de lirismos e voltemos a Agustina: ostracizaram-na! E isso influenciou quase toda a esquerda, quase todos os bem-pensantes. Quem a desamarrou do pedregulho salazarista, que lhe queriam à força prender à perna, foi a geração da revista O Tempo e o Modo, de António Alçada Baptista, com João Bénard da Costa à cabeça, seguindo afinal o que Sophia de Mello Breyner Andresen, por amizade, admiração e comunhão literária, já defendia. O Tempo e o Modo proclamou a genialidade de Agustina, como proclamava a divindade de Sophia e de Jorge de Sena ou de Ruy Belo, nesses tempos em que se chegava a Deus de caneta na mão.

E, no entanto, continuo a dizer que nós, os homens, devíamos ler mais Agustina. Ia dizer porquê. Ia dizer: os livros dela; mas corrijo já e digo: os homens dos livros dela são um espelho admirável e devolvem-nos a imagem de uma natureza masculina perdida. Uma natureza pela qual sentimos mais nostalgia do que a que Proust sentia por esse passado que o odor e o sabor da madalena molhada no chá lhe trazia à memória.

Tomei algumas vezes chá com Agustina, mas nunca a vi molhar no chá madalenas proustianas. A que madalenas vai, então, Agustina buscar essa natureza masculina perdida? Esqueçam o chá e os bolos. A natureza masculina que Agustina pinta, a forma como a cada homem descobre o carácter, tem raízes biográficas.

Amar as mulheres

E volto a essa autobiografia, O Livro de Agustina, que tinha como subtítulo A Lei do Grupo. Na primeira linha do livro emergia a figura do avô Teixeira. E nem é preciso fazer nenhum homérico esforço hermenêutico para se celebrar a geminação desse avô José Teixeira com Francisco Teixeira, herói e galã de A Sibila.

No romance, Francisco é um “tipo pequeno, de muito nervo, prudente e conciso de falas, ciente do muito prestígio das suas suíças loiras junto das mulheres”. Na autobiografia, Agustina diz do avô José que é “pequeno de estatura, valente, de poucas falas, cheio de ironias que são fugas cautelosas, estratégias, emoções veladas.” Mas já antes, Agustina jurara que o avô Teixeira “amava as mulheres, que é mais do que as desejar”, rematando: “Elas adoravam-no e faziam bem. Que há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las.” Seriam também loiras, como n’ A Sibila, as suíças do avô de Agustina?

Nesse romance, outra personagem, Maria, aos 9 anos, apaixona-se por Francisco Teixeira, quando ele a salva numa tarde de invernia e a vem entregar a casa: “- Ora acautelem-me lá esta rapariga que é com ela que eu vou casar…” Na autobiografia que para mim escreveu, Agustina explica que a avó tinha 28 anos quando se casou com o avô Teixeira de 41: “Justina ficara enamorada desde os sete anos por José, com 20 anos, quando ele a ajudou a passar um ribeiro em dia de invernia e lhe disse que se casaria com ela, um dia.”

 Entre a fantasia e o pavor

O que eu quero dizer é que a obra de Agustina é uma rara celebração do masculino na literatura das últimas cinco ou seis décadas. Nas suas evocações da infância, Agustina saúda Texas Jack, o pistoleiro, e o seu cavalo Jumper, saúda os heróis de Emilio Salgari e os aventureiros de Júlio Verne. O que alimenta os homens dos romances de Agustina são essas mitologias inocentes, são as mitologias familiares que envolvem a figura do avô, que imagino a aprender o jogo do pau com o José do Telhado, e as aventuras do seu pai no submundo do Rio de Janeiro. Os homens de Agustina têm de ser conquistadores, sedutores, jogadores, aventureiros. Pecadores, em suma.

A imaginação de Agustina descobriu primeiro os homens. Os livros que a formaram eram misóginos, com mulheres decorativas, “sempre elegantíssimas, com cinta de vespa e cabelos frisados.” Só mais tarde, quando pôs os olhos na Madame Bovary ou começou a ir aos filmes mais adultos, as mulheres lhe inspiraram, afirma Agustina, “sentimentos devastadores como a Greta Garbo ou a Dietrich”.

O rumor da verdade é a maior fonte de inspiração de Agustina. Também dos seus heróis masculinos. Entre a fantasia e o pavor ouviu contar histórias de assaltos e crimes; era ainda menina e ouviu, com sonâmbula curiosidade, o murmúrio de inconfessáveis histórias de homens “que sabem amar as mulheres e merecê-las”, o murmúrio da pena das amantes do marido que tinha a avó Justina.

Termino. À língua portuguesa – que é feita de pérolas finas, jura Agustina –, os romances dela acrescentaram um conjunto humano que lhe faltava, os homens. Uma ideia de homem – sedento de infinito, mesmo e sobretudo se o não sabe – que fascina Agustina e assusta o chá dançante da contemporaneidade. É preciso relê-la e voltarmos a falar disto, não esquecendo embora o aviso que Agustina nos deixou: “Somos sempre muito faladores com o insignificante e muito calados com o que nos assusta.”

2 thoughts on “Agustina é para homens”

  1. Que crónicas bonitas. Agustina ia sorrir se as lera. E,certamente, opinar algo inesperado.
    Nos livros que li – e li poucos – não vi tanto os homens como as mulheres. Que não eram propriamente florzinhas de estufa.

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