Meus Kambas: Onésimo Teotónio de Almeida

Para esta varanda, que felizmente não é no Minnesota, nem no Wisconsin, convido os meus kambas. Amigos de longa ou recente data.
Onésimo Teotónio de Almeida, escritor e professor,  pessoano admirável, autor de livros desassombrados, senhor de uma prosa fluente e de elegante coloquialidade, tem-me dado o privilégio de trocar comigo algumas gentilezas, muita simpatia. Acedeu a deixar-me publicar este texto fabulosamente gélido. Não podia, e é isso que quero dizer, ser mais quente. 

Driving-In-Snow

Nota bárbara sobre frio bárbaro
Onésimo Teotónio de Almeida

2 de Fevereiro

Tem sido uma invasão de emails na minha caixa de correio de amigos a indagarem se a Leonor e eu estamos sobrevivendo às brutais temperaturas que a televisão propaga como ocorrendo por estas bandas. O meu silêncio de uma semana sem remeter aos amigos as habituais “notas bárbaras” por dificuldades técnicas no envio de fotos não ajudou o caso. Alguns devem mesmo ter pensado que morri soterrado no gelo.

Aqui por Rhode Island, os dias têm sido esplendorosos de sol e céu azul. O temómetro desceu até – 15º C, nada de matar nem que já não tivesse ocorrido no passado. Sobretudo nada comparável aos -50ºC de Minnesota, Wisconsin, Chicago… Aí, sim, tudo fiou mais fino.

Salta-me à mente uma história por mim não presenciada, mas ouvida na rádio. Num Inverno de há anos, a Leonor e eu rolávamos de carro por uma estrada do norte da Nova Inglaterra e sintonizávamos uma estação de rádio local. O programa era uma linha aberta de conversa com os ouvintes, a quem o moderador pedia que contassem uma história pessoal, verdadeira, de experiência dura de frio.

Uma mulher entra em linha e narra o seguinte (resumirei porque ela deslindou-a demoradamente, enchendo a narrativa de magníficos pormenores que ajudavam a assegurar-lhe autenticidade). Em enxutas palavras, aqui vai:

Era um first date, a instituição americana de marcar um encontro com um/a namorado/a. Pode ser mesmo o primeiro entre gente que se conheceu por acaso e pretende conhecer-se melhor. Às vezes é um blind date, encontro às cegas entre desconhecidos, agendado por amigos esperançados em que duas pessoas encontrem entre si algo em comum para uma possível relação duradoura. Hoje, tudo isso se faz via serviços na Internet e, portanto, nada alheio a Portugal. Mas fica a introdução para os leitores da velha guarda.

Contava então a moça que fora jantar com um indivíduo num primeiro encontro. Tinha nevado e o frio era gélido. Depois do jantar, a moça, conservadora de costumes e a querer marcar uma posição de seriedade, de alguém que não acreditava em amor à primeira vista, pedira ao comparsa para deixá-la em casa. Ele, sem evidenciar qualquer sinal de contrariado, respeitou-lhe o desejo e rumou a cumprir-lhe a vontade.  A alturas tantas, porém, a jovem foi assaltada por uma vontade enorme de fazer um xixi. Atravessavam numa estrada no meio de uma floresta sem sítio onde parar a não ser mesmo no meio do mato. A urgência apertava tão severamente que teve de ser mesmo ali. Noite cerrada e sem luzes, não haveria problema.

A jovem saiu do carro, contudo a neve no chão era tão alta que ela se enterrava e não teve outro remédio senão aliviar-se mesmo junto ao carro, apenas com a porta a servir de biombo. Entretanto, sem querer, encostou a nádega ao carro e – quem já experimentou temperaturas baixas a valer sabe o que acontece ao corpo se toca metal gelado – ficou colada. Na tentativa de se descolar, encostou-se ainda mais e… mais pregada ficou. Acometida de terror, gritou a pedir socorro. O seu date saltou fora do carro a averiguar o que se passava e deparou com ela de cócoras, de pernas entulhadas na neve e de rabo ao léu encostado à porta do carro. Tentar desviá-la a frio da superfície metálica de certeza resultaria num desastroso arrancar-lhe de pele que ficaria presa ao carro, deixando-lhe aberta uma vasta ferida na coxa e traseiro. A única solução era – e quem vive em regiões frígidas sabe disso – lançar água quente sobre a zona colada ao metal. Mas onde ir buscá-la? À mão, ele só poderia recorrer à… sua urina. Hesitou, hesitou mas importava ser célere no agir e explicou então a sua ousada proposta. Em desespero de causa, a moça teve de aceitar. O rapaz abriu a barguilha, tirou fora o dito cujo e, generosamente, regou a nádega da infeliz que, envergonhada, sentiu vontade de se enterrar na neve como a Leonor do “Naufrágio de Sepúlveda” da História Trágico-Marítima se enterrou na areia cobrindo a sua nudez com a cabeleira.

A inventiva solução do moço resultou.

Regressaram ao carro, todavia mantiveram-se num civilizado silêncio durante todo o resto da viagem. O rapaz deixou-a em casa, onde ela se arrumou respirando finalmente de um profundo alívio, mil vezes maior que o sentido depois daquele imparável xixi. E – contava a radiouvinte – nunca mais se viram na vida.

drivesnow

4 thoughts on “Meus Kambas: Onésimo Teotónio de Almeida”

  1. Hollywood faria um filme desta história contando-nos que, no ano seguinte, inadvertidamente, aqueles seres se encontravam de novo e, entre sorrisos amarelos e palavras desconchavadas repetiriam a proposta de uma “date”, ‘ mas numa noite quente’, sugeriria ele levando-a timidamente a rir, pensando no seu desgraçadamente gélido traseiro de má memória e, no final do jantar, tudo acabaria num beijo, primeiro desajeteidado e, por fim, metendo a 3a, com música de fundo acompanhando a câmara em plongé a afastar-se e eu a desligar a televisão e a pensar ‘é sempre previsível, que diacho’.
    Gosto bem mais da Onésima história por ser verdadeira. Abraço

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