A ilha deserta

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Mussulo, foto de António Barata

O que é uma ilha? Qualquer ilha é um círculo de solidão, redonda soli­dão cer­cada de mar por todos os lados. Quando ouvi­mos a pala­vra ilha saca­mos logo do col­dre uma pis­tola que antes de dis­pa­rar ainda per­gunta “o que é que eu levava para uma ilha deserta?” Como se as tone­la­das de areia e soli­dão de uma ilha, as pal­mei­ras que o vento finta, pudes­sem ser huma­ni­za­das pela baga­gem do náu­frago meta­fí­sico, baga­gem de livros ou fil­mes, uma música favo­rita ou um oci­oso tabu­leiro de xadrez.

A ilha exerce uma suave pres­são sobre a cabeça de um homem: quando ele dá conta já não dá conta e só deseja ser um Robin­son Cru­soé. O que é que eu leria se fosse Robin­son Cru­soé? Que­re­ria ainda ler as pági­nas de culpa e reden­ção de Lord Jim? Leria con­tos de outras ilhas e de outros mares, con­tos dos mares do sul de Somer­set Maugham? Ou entretinha-me em terra, dedo a dedo e per­verso, com uma Lolita de Nabo­kov? E se eu não era – oh! se era – Robin­son para, numa sexta-feira, ler do falecido poeta a Morte sem Mes­tre!

E os fil­mes da minha ilha deserta? Eu quereria ver, ilha sobre ilha pro­jec­tada, a Saga de Ana­tahan. Revia, outra ilha, flu­vial, no Mis­sis­sipi plan­tada, a ilha do Mud, a cor­rer pela orla de uma infân­cia que fin­gi­ria ser a minha. Ou não via ilha nenhuma e enfiava-me ou fer­via (ou fer­via e enfiava-me) no apar­ta­mento de Marilyn, géi­ser da ilha de Manhat­tan em que ela morava em The Seven Year Itch. Mas como é que se pro­jec­tam fil­mes numa ilha deserta? Projecta-os de cor, frame a frame, a nossa cabeça, por­que uma ilha aperta-nos tanto o crâ­nio que a nossa cabeça escu­rece e se faz cinema.

Con­fesso: já tive a minha ilha deserta. A mais deserta das minhas filhas foi a do Mus­sulo, à frente de Luanda, quando lá vol­tei, em 86. O filme era o de uma guerra civil de silên­cio e ago­nia. No Mus­sulo, onde, com ele a mulher, filhas e amigos, me levou o meu avilo Jorge,  havia ecos da velha canção, Res­sur­rei­ção, cantada por Diá Kimu­ezo e nem uma nota de Coney Island Baby de Tom Waits. O lauto lusi­tano almoço pediu sesta e dormi na imó­vel água tépida entre o Mus­sulo e a costa — amnió­tica doçura, a de assim dei­tado, dor­mir den­tro da água do mar. Acordaram-me os pei­xes a fazer-me cóce­gas nos pés. Depois, fui sozi­nho, linha recta até ao outro lado, o do oce­ano. A sufo­cante ilha deserta, um cheiro intenso e bom, de peixe seco e man­di­oca assada. Um cheiro quente, espesso, cheiro dessa estóica huma­ni­dade que nem sabe o que epi­cu­rismo seja, dizia-me o que sem­pre soube, que em nenhuma ilha se está sozi­nho. Sentei-me com o homem sozi­nho, um velho pes­ca­dor. Com a infi­nita gen­ti­leza de um cota, meu mais velho, dizia-me, xé minino. E falá­mos. Tá mau, nem madeira, nem alca­trão, nesses anos de má guerra só tinha cola, rede e umas ras­pas com que tapava rachas da canoa de ir à pesca. Não se quei­xava nem pedia. Dizia só, xé minino, com uma sere­ni­dade de Quin­tus Hora­tius Flac­cus. Como o romano, tam­bém este ango­lano, nobre e inde­pen­dente, fora filho ou neto de escravo liberto. Estava ali sen­tado, como Horá­cio em Tibur, uma canoa a sua poe­sia, a sua casa de campo uma ilha. Uma ilha aperta-se-nos à cabeça como as deses­pe­ra­das mãos do nosso amor e, sem dar­mos conta, já somos Robin­son Crusoé.

2 thoughts on “A ilha deserta”

  1. Bela praia sim senhor, ao Mussulo só fui uma vez, quando fui para Angola e em trânsito para Benguela, em Dezembro de 87. Em Benguela também tínhamos belas praias, além da Morena, a Baía Azul maravilhosa de águas azuis turquesa e a mais intimista da Caotinha, além da Baía Farta menos cosmopolita com suas fábricas de caranguejos gigantes, bons para degustar umas Heineken bem fresquinhas.

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