Que quadro é que eu levaria para uma ilha deserta? A ter de roubar um quadro, só mesmo um, para me acompanhar na solidão da mais recôndita e nua das ilhas, escolhia esta Crucificação, que Matthias Grünewald começou a pintar em 1512.
Duas mulheres, dois homens e o cordeiro de Deus (o que tira os pecados do mundo?) rodeiam um agónico Cristo que os especialistas dizem estar morto. Mentem: pressinto haver nele um indelével rasto de vida. Este homem gigantesco, cujo peso torturado faz ranger o madeiro que o sustenta, desequilibra todas as linhas, nega os mais básicos princípios da boa composição. Um morto já não se cansa a romper assim as convenções de painéis e altares. “Quem me dera estar morto” diz o ar que lhe enche o peito e recorta as costelas; “quem me dera estar morto” diz o esforçado encosto do joelho esquerdo, diz o vigor com que o rei judeu na cruz ainda eleva os ombros. As mãos dele, garras impoderosas, confirmam um último alento.
Este quadro não é belo. Só é belo de nele não haver beleza nenhuma. Só é belo pela veemência com que, militante, protesta as dores do Cristo salvador. Protegida por invisíveis alarmes (e, de certeza, com escutas) na antiga igreja que agora é o Museu de Unterlinden, em Colmar, há nesta Crucificação um excesso patético de que as mãos do Cristo flagelado são a mais retorcida e desmesurada representação.
Abaixo deste Cristo que o sofrimento faz gigantesco, todas as outras figuras encolhem e se encolhem. O crescimento – ser esticado – dói muito ao Cristo pregado aos dois barrotes de madeira; mas é também, até mais, terrivelmente dolorosa a violenta compressão de Maria, Madalena, João e, no outro lado, do Baptista. Tive, e julgo que todos tivemos, sonhos adolescentes de ver quartos, mesas, cadeiras gigantescas, de quase infinita grandeza e sonhos de tudo ver em inenarráveis paisagens liliputianas, de figuras miniaturais. Ambos são sonhos penosos, acompanhados da mesma tontura que faz a rejuvenescida Madonna de Grünewald tombar nos braços do apóstolo dilecto.
Ou que faz a entrançada angústia das mãos de Maria Madalena.
Nenhuma imaginação interpretativa. No quadro, nesta Crucifixão em que já a noite cai e um rio de indiferentes águas corre imutável em fundo, sobre a mão quase acusatória do Baptista, a cujos pés o cordeiro segura uma cruz simbólica e simbólico verte no cálice o sangue da salvação, há uma legenda que diz literal: “Illum opertet crescere, me autem minui”. É preciso que ele cresça e que eu diminua. Matthias, que não se chamava Grünewald, não deixou a ignorantes mentes alheias como a minha, o direito a falsos testemunhos, fixando ad aeternum a verdade do seu portentoso retábulo.
Este seria o meu quadro roubado. Mas como é que se rouba de um retábulo a madeira de um painel de dois metros e sessenta e nove de altura por três metros e sete de largura?
É muito bonita pintura e merece ser roubada. Ainda que uma ilha deserta me pareça exíguo palco para o seu valor. Mas enfim, a vida é o que é. E obrigada pelas mãos do crucificado que valem um mundo, são uma agonia atrozmente revoltada. O que não significa que esteja – ainda – vivo (no quadro, claro). A morte nem sempre traz a pacificação e tanta vez são os vivos que pacificam os mortos.
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O que seria de nós sem os vivos…
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Rouba-se através da imaginação. Eu levaria A Ceia em Emaús do Caravaggio que está na National Gallery de Londres bem guardado.e que só tem 141 x 146.
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Bela escolha, Albertino. Sonhemos..
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Em resposta à última pergunta, propunha o David Copperfield ou, sem dúvida preferível, o lusitano Luís de Matos. Tinha a vantagem de não ser roubado, mas desaparecido, o que tira logo um enorme peso da consciência!
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Por acaso, gostava de conhecer o Senhor Copperfield. Tem pinta.
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Pois, acabava por duplicar o trabalho. Primeiro tínhamos de roubar um camião (com grua), Manuel. 🙂
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🙂 Ou seja, o cabo dos trabalhos.
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