Jesus Cristo, do alto da montanha, desfiou as Bem-aventuranças. Não disse, «bem-aventurados os que bebem», mas recomendaria mais tarde, num momento crítico, diga-se, o pão e o vinho.
Eu, embora antigo, não conheci Jesus Cristo. Conheci, porém, John Huston. Já vinha numa cadeira de rodas, momento crítico portanto, que cada um carrega às costas a cruz que lhe calha ou a cruz que pode. Nesse encontro, garrafinha de oxigénio ao seu lado, John Huston disse e o insatisfeito olhar dele confirmou: «Se, com o que sei hoje, pudesse voltar atrás, mudaria uma coisa na minha vida: teria bebido muito menos whisky e muito mais vinho tinto.»
Eis o que tenho para vos dizer: a lei seca foi um retrocesso civilizacional. Desensinou a beber, se me autorizam o neologismo. O bêbado, boca zurrapada, a transpirar álcool pelos olhos e atrás das orelhas, é um dos maus resultados da lei seca. Não me entendam mal, não troco uma gloriosa bebedeira por uma pipa de moralismo.
Não conheço o actor Michael Caine e só vi Peter O’Toole em pessoa uma vez. Mas, em 1959, eles estavam juntos, em Londres, a representar no Royal Court. Foram, digamos, jantar depois da peça. Voltavam à cena no dia seguinte, domingo, às 8. Entraram numa tasca de Leicester Square, coisa mal frequentada por malta rija, tipos que hoje, em Lisboa, fariam a felicidade da estiva. Veio a noite e depois o dia. Acordou-os, sabe Deus onde, uma rapariga desconhecida, estavam deitados na mesma cama, vestidos como na noite de sábado, mas muito mais amarrotados. A moça disse: estamos nos arredores de Londres. Não sabiam o que tinham feito e como tinham chegado ali. «É melhor não sabermos», terá respondido Michael Caine. O’Toole olhou para o relógio e viu que eram cinco da tarde. «Cinco da tarde de domingo – disse – ainda chegamos a tempo, a peça é só às 8.» A rapariga interrompeu-o: «Sim, só que hoje já é segunda-feira.»
Há um incógnito, absconso domingo em falta na vida de Caine e O’Toole. Voltaram ao teatro e passaram pela tasca. Na porta ou na montra, não sei bem, estava colado um cartaz: «Entrada interdita a Michael Caine e Peter O’Toole.»
Eis o que tenho para vos dizer, a lei seca foi um retrocesso civilizacional, mas eu prefiro um só copo de Quinta do Vale Meão à bebedeira homérica. O bêbado homérico perde-se dentro de si mesmo. Eu gosto da vida porque me disseram que davam bolos e um dos meus bolos é o degustado copo de duas Tourigas e uma Tinta Roriz. O bêbado é a anti-pessoa, diria o cronista Nelson Rodrigues. E eu digo, a boca que bebe o tinto Chryseia, bebe como quem beija. E é essa boca, esse copo, esse divino licor, que aqui louvo, com a voz de John Huston. Ou com a voz crucificada de Jesus Cristo: «Tomai e bebei todos.»
Embora perceba o que John Huston quer dizer, não sei que tipo de bebedor ele era. Poderia ser como o Caine e o O’ Toole (das bebedeiras de caixão à cova…) e aí, lá se ia o prazer de apreciar o bom vinho, Manuel.
Não há qualquer dúvida, a quantidade sempre foi inimiga da qualidade. 🙂
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Há um afundanço alcoólico nórdico (que alguns anglo-saxónicos partilham), que me deixa varado. Acho que numa semana daria comigo em morto, caro Luís. Estamos juntos.
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Estas histórias cinéfilas são sempre do melhor. Abençoado baú onde ele as vai buscar! O latino dá-lhe no tinto, muitas vezes se emborrasca, pode sair do tasco mais na diagonal que a direito, mas gozou bem a noite toda. A faixa Norte é mais de beber de tudo, muito, depressa, e à meia-noite já clama plo gregório na via pública.
E depois os PIGS são os do Sul. Tá bem tá.
Abraço
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Gonçalo, eis o que eu, por palavras bem menos brilhantes e vivas, disse ali abaixo, antes de ler este comentário. Subscrevo tudo.
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Já durante as filmagens da Rainha Africana no Congo ex-Belga eram proverbiais as bebedeiras do Huston e do Humpfrey Bogart, outro célebre bebedor, e eles foram os únicos que não tiveram diarreia porque só bebiam whisky; o restante da troupe incluindo a Katharina Hepburn sofreram distúrbios intestinais homéricos. Lembrem-se que estamos em 1951.
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é tudo verdade, amigo Albertino, mas palpita-me que a Katharina teria sempre os seus distúrbioszitos, fosse no Congo, fosse na Bretanha 🙂
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Não consigo achar piada a quem se perde de si por excesso de álcool. Sei , suponho eu, quase tudo sobre bebedeiras, suas fases e estrilhos adicionais. Ora, levei anos de taberna sem provar ou sequer gostar de vinho.
E no entanto concordo, as bebedeiras de vinho são mais saudáveis e dão para ir conversando, estreitam camaradagens improváveis. A bem dizer podem durar do nascer ao pôr do sol. Uma seca para quem assiste.
As coisas que o senhor sabe do mundo do cinema deixam-me sempre apalermada. Onde é que as terá aprendido?!
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