São Paulo, Prisão de Luanda

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Carlos Taveira e eu cruzámo-nos no Lobito, em 1975, em casa da Mitas, minha colega, professora no Liceu do Lobito. Cruzámo-nos no que foi uma reunião quente, com aquela incendiada veemência que havia nas reuniões de crítica e de auto-crítica, se bem que essa conversa não fosse uma reunião formal. Mas eu estava já num processo de corte do cordão umbilical que me ligava ao meu anárquico maoísmo, descrente de tudo o que cheirasse a MPLA e com a mesma absoluta necessidade de viajar e ir estudar para o estrangeiro, que sentira durante o fascismo tépido de Marcello Caetano.

Carlos Taveira assistiu a essa conversa e lembra-se. E eu lembro-me de um jovem atento, com aquele ar de Che Guevara que todos então tínhamos, mesmo se uns mais do que outros. E nunca mais nos voltámos a encontrar, mesmo se ambos passámos o dia da independência, 11 de Novembro de 1975, em fuga, na mesma cidade de Novo Redondo, ambos temendo que Luanda pudesse cair e que, com os sul-africanos a virem a galope do sul, acabássemos às mãos deles e da Unita. E ambos acabámos separados e sem contacto, afinal, em Luanda, em 1976, esse ano de cinza e chumbo em que a independência se converteu numa mortalha da liberdade, da pluralidade de pensamento, de qualquer das utopias – e eram várias – que batiam nos ventrículos de uma juventude que podia ter dado tanto a Angola.

Os arados de 42 anos lavraram o tempo, esfacelaram ideologias, rasgaram-nos pessoal e sentimentalmente, e levaram até a Mitas, nosso ponto de referência e encontro. E eis que me chega um livro do Canadá, um romance de temática angolana, original, riquíssimo de linguagem, surpreendente de estrutura, com o forte sabor de quem na mesma boca mistura marufo e uma aguardente velha. Pergunta atrás de pergunta, descobrimos, como se revelássemos um velho rolo de uma velha máquina fotográfica, quem éramos e o que nos tinha juntado e separado.

Ao romance de Carlos Taveira hei-de publicá-lo a seguir, mas antes, depois de descobrir que ele tinha sido preso pela DISA, na mesma altura em que eu saí definitivamente de Angola, e sabendo que ele registara a memória dos anos de prisão que viveu, desafiei-o – para não dizer que o intimei – a publicar e a publicar já este livro, a que ele chamou, com simplicidade, São Paulo, Prisão de Luanda, título que na sua singeleza evoca gritos, medo, suores frios, mas também coragem, estoicismo e fé.

É com este livro que a Guerra e Paz começa o ano de 2109. Por uma razão muito forte. Este livro não é um livro do passado. Este livro é um livro que quer construir o futuro. Tudo nele nos convida ao conhecimento sereno da História e a olhar o futuro sem raiva, sem rancor, mostrando que a grandeza humana pode ser de tal ordem que sobrevive à tortura, à brutalização moral, à degradação mais extrema. Essa luz, a luz da vida, luz de amor, luz de finíssimo humor, está presente em São Paulo, Prisão de Luanda, impondo-se com uma tranquilidade, uma aceitação do mundo e das suas mil diferenças, dando-nos uma inesquecível lição. Este é um livro para todos os angolanos lerem; este é o livro que todos os portugueses que viveram a experiência de Angola têm de ler: no sobressalto do passado, um indisfarcável sorriso de esperança no futuro.

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