Meçam as palavras. Não chamem vígaro ao príncipe dos vigaristas ou trambiqueiro ao audacioso embusteiro. Elmir de Hory, que Orson Welles celebrou em “F for Fake”, enganou meio mundo pintando falsos Picassos, Matisses e Modiglianis. Aceitando o impulso estético que lhe comandava a mão, Elmyr fê-lo com o mesmo enlevo com que Maria aceitou ser mãe virgem, semicerrando os olhos ao sopro do Espírito Santo.
Devemos apreciar embuste a embuste: e a apreciação moral não pode ser o único critério de avaliação. Se o sonho comanda a vida, então a arquitectura do embuste, o seu horizonte, a sua minuciosa e labiríntica tessitura têm de nos merecer a vénia estética que o sonho, essa fraude nocturna, nos merece a todos e fez ganhar a vida a Freud e à corte de psicanalistas seus seguidores.
De Gregor MacGregor as enciclopédias dirão que era um aldrabão. Era escocês, o que, como um tipo ser português, desculpa muita coisa. Lutou contra Napoleão e gostou. Juntou-se a Bolívar e foi general dele no exército que tornou a Venezuela independente do vil colonialismo espanhol. Lutou tanto e tão bem que casou com uma prima do Libertador.
Eis um homem que, insatisfeito com o seu mundo, o queria mudar. O que é, aliás, da ordem do trivial. A MacGregor não lhe bastava o mundo existente. Ao mundo, que o Senhor Deus todo-poderoso burilou nos sete dias da Criação, faltava um país, Poyais. Criou-o MacGregor, situando-o à volta do Rio Negro, em plena América Central. Inventou esse país, deu-lhe a monarquia como regime, e a si mesmo fez-se príncipe. Em Londres circularam milhares de guias, com as cidades fantasiosas, as montanhas, as ubérrimas riquezas de Poyais. Emitiu, então, douradíssimos certificados do tesouro desse país imaginário, a que logo o lúbrico materialismo britânico afinfou o dente.
Feliz com a sua criação, MacGregor, ao sexto dia, fechou a cúpula do palácio, que era esta astuciosa fraude, vendendo o direito à emigração: dois barcos largaram com colonos britânicos para o eldorado que seria Poyais caso existisse. Encontraram selva, febre e desolação. Inalcançando a beleza da coisa, a justiça perseguiu-o, mas MacGregor refugiou-se na Venezuela, que o recebeu como herói. Eis a trágico-cómica matéria de que se fazem os sonhos, a que Shakespeare se atiraria como um menino à marmelada.

Pois não pode a gente deixar de admirar embusteiros tão sonhadores como esses dois, o pintor farsante e o criador de novo mundo e à sua medida. Mas, lá está, não conseguem ser deuses a sério que é como quem diz, por muito tempo, mata-os qualquer deslize ou tão só a nudez crua da realidade:). Ora bolas. Fica a aura.
LikeLike
Tem toda a razão, Bea, embora a realidade também tenha vindo a causar bastante mossas aos deuses.
LikeLike
Compreendo o ponto de vista do Manuel.
Sempre tive uma admiração secreta pelos artistas do “conto do vigário”, que enganam sobretudo aqueles tipos parecidos com o Patinhas da banda desenhada, que assim que lhes falam em dinheiro, os olhos ficam vidrados com cifrões. 🙂
LikeLike
Luis, o que eu adorava ter aquela patuá
LikeLike
Podia ser vígaro mas tinha algum talento para copiar de tal maneira que enganou meio mundo, vendendo gato por lebre.
LikeLike
Admirável talento. Que inveja.
LikeLike