Tenho de me lembrar e sublinhar, a mim mesmo, uma coisa. Esta Página Negra nasceu para aqui se reunirem, como náufragos numa ilha deserta, todos os textos que eu fui escrevendo nestes últimos quarenta anos. Escrevi este, sobre Herberto Helder, que eu nunca conheci, apesar de ser tão próximo, de conspirativos cafés e ócio, de amigos meus, quando ele fez oitenta anos. Faria hoje 88. Depois disso, novos livros dele instigaram-me a outros textos. Mas queria deixar este assim, como em 2010 o publiquei.
Só há uma forma de falar de Herberto Helder. É ser simples e claro. Hoje [2010], o calendário comemora-lhe o 80º aniversário do nascimento. Nasceu e cresceu como era obrigação dele e nada disso vem ao caso. Interessa é que, desde 1958, a língua portuguesa escrita tem de lhe estar agradecida. Quando publicou “O Amor em Visita”, Herberto Helder mudou a geografia da língua, a sua moral. Nesse poema e na Poesia Toda que é a obra dele, introduziu uma riqueza lexical que nenhum outro escritor da língua, brasileiros incluídos, se sentira autorizado até então a utilizar. Com Herberto, a língua visitou o interior do corpo humano, desceu ao fundo escuro da terra, viajou cósmica, sem deixar de ser radicalmente vegetal.
Não há um qualificativo que consiga exprimir a estatura da revolução que a poesia de Herberto operou. Deixem-me utilizar a palavra moderno, apesar da debilidade e insuficiência semânticas. Herberto fez moderna a língua. Grande parte da literatura do século XX escrita em língua portuguesa, sem prejuízo do sentimento, da emoção ou, mais ocasionalmente, do pensamento que gera, é lexicalmente serôdia. Mesmo reportando-nos a figuras maiores, quando lemos Pascoaes ou Aquilino, talvez menos mas também Tomaz de Figueiredo, encontramos um sarro rural, uma culpa miserabilista, um esqueleto de piedoso realismo que ao desinspirar-se descamba no neo-realismo de Redol e Soeiro Pereira Gomes. É uma literatura de samarra e, se espreitarmos bem, de ceroulas. Não critico quem pleite pela necessidade desse retrato social ou da inspiração telúrica, e que, a muitos, tudo isso sincera e muito paroquialmente comova.
A língua portuguesa de Herberto é outra. Diferente mesmo da de Pessoa que, sobretudo em ele-mesmo ou Álvaro de Campos, a fez futurista e universal. Diferente da língua do contemporâneo Jorge de Sena que a fez discursiva e capaz de dialogar com Debussy ou com Goya. A língua que nos poemas de Herberto se escreve é o triunfo universal da imaginação, é a língua utilizada por um cérebro que usa a metade esquerda e a metade direita. Amoral, a língua de Herberto Helder exibe a volúpia do luxo, a volúpia da liberdade.
O luxo é, essencialmente, lexical: nele não há rasto das palavras que à exaustão foram o estandarte realista. Na poesia de Herberto surgem harpas, crateras, pólipo, mamilo, mãe, fenda, sexo, metamorfose, carne, veias, menstruação, pérolas, prata, planetas, átomos, constelações.
A liberdade é gramatical e associativa. Como um centurião romano se permitia o prazer reconfortante da sauna, assim Herberto ofereceu à gramática a entrada na literatura. Os adjectivos e os advérbios sentem os músculos soltar-se, gerúndios e particípios passados descobrem que afinal funcionam articulações que julgavam ossificadas.
Mas a liberdade maior é a associativa: a sua poesia dá a uma jovem mulher um arbusto de sangue, a figueiras pulmões de esponja branca. Na língua de Herberto pode sentar-se a paisagem numa cadeira e lê-la com extrema violência.
Permito-me a doçura de um lamento. A poesia de Herberto é curvamente narrativa. Povoada de corpos, um torcido dorso à volta da sua dor, anuncia histórias, a metamorfose de personagens, o espasmo de uma felicidade por vezes amarga. Essa dimensão romanesca testou-a o poeta num livro de contos, Os Passos em Volta, que é uma das mais belas experiências ficcionais da língua portuguesa. Em “Polícia”, um dos contos, vivido por um clandestino em Bruxelas, conhecemos a amante com que sempre sonhámos, Annemarie, aquela a quem foi concedido o dom da poesia subversiva: “Annemarie despiu-se e deitou-se nua sobre o cobertor enquanto eu tentava aquecer um pouco de água. Falámos longamente da chuva, do amor e das leis”. A poética desses contos faz-nos sonhar com o que poderia ter sido um romance de Herberto Helder. A forma alucinante e tão precisa como descreve, a surpresa das situações (“Eu digo o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou”), a simetria das frases, os finais assertivos, deveriam ter-nos dado o romance que, depois de Eça, a língua portuguesa precisava de ter para se juntar aos romances de Agustina e à excepção de Os Sinais de Fogo de Sena.
Basta que nos tenha dado a poesia toda. Deu-nos lume, o incêndio de versos longos. Esta exuberância, esta criação límpida é única na língua portuguesa. Podemos encontrar-lhe fôlegos de Whitman, a intensidade de Dylan Thomas, ou procurar-lhe nos versos o rumor humano, antiquíssimo, de François Villon. Em português não, não tem antepassados: Herberto Helder está condenado à brancura explosiva da originalidade.
Tenho vários livros dele incluindo a Poesia Toda. Mas fiquei agarrado ao poemas As Musas Cegas V, quando o ouvi declamado na rádio da Guiné-Bissau no ano de 1973 em plena guerra colonial. Acompanha-me todos os dias e declamo-o só par mim.
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Vou reler as Musas Cegas e ver se o consigo trazer para aqui.
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Eu que uso samarra, sou paroquial e o mais, e só não uso ceroulas por ser uma fraqueza na costura e não haver no pronto a vestir um artigo adaptado ao feminino, pois admiro a modernidade, ou talvez mais a unicidade de Herberto, um poeta que se dignou criar tudo do princípio. Original, é o termo.
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bem visto, Bea. Originalíssimo.
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