Carta fechadíssima a Jean Seberg

Carta escrita há nove anos. Enviada para o endereço certo, como já conferido com os correios celestiais. Continuo a aguardar a resposta de Jean Seberg.

Jean Seberg

Dear Jean,

Estás esten­dida no banco de trás da Renault branca. A ideia do corpo esten­dido, as per­feitas per­nas, a nuca tão lisa, é de um ero­tismo ingénuo, de provín­cia, certo para a rapariga de Mar­shall­town, Iowa que tu foste e nunca deix­aste de ser. Mas já estás aí há dias, pele deslavada, corpo em decom­posição. Sabes bem que mor­reste – morreste-te tu mesma – o que os dois oca­sion­ais gen­darmes desco­brem nesse 8 de Setem­bro de  1979, fez, há pouco, 39 anos. Tu tens, nesse dia da tua morte, 41 anos. A 13 de Novem­bro de 1938 não tin­has nem um. Só o nome: Jean Dorothy Seberg. Bebé americana.

Como é que chegaste a ser tão francesa? Foi só por teres sido, Joana d’Arc, Santa Joana, às mãos grossas e implacáveis de Pre­minger? Foi ele que procurou e te escol­heu, entre vir­gens, con­cu­bi­nas, cheer­lead­ers. Filmou-te como quem sac­ri­fica. Rapou-te o cabelo e queimou-te a preto e branco.

Depois, a cores, fez de ti Cécile. Vestiu-te blusas leves, calções que oscilam entre o curto e o muito curto, fatos de banho ver­mel­hos, amare­los e azuis que te fazem fina a cin­tura, cabelo dourado quase rapado, a nuca, sem­pre a nuca tão bonita, e o vestido preto preso ao pescoço por uma gola del­i­cada, pequen­ina. Sabes bem que bas­tava esse filme, que te bas­tava a inces­tu­osa insin­u­ação de Bon­jour Tristesse, o filme mais a cores que existe, para que fos­ses – sejas – muito amada.

Mas ainda tens, querida, o A Bout de Souf­fle com o Godard. J’ai envie de faire [avec toi] beau­coup de petites choses qui me plai­saient, disse-te ele, diria eu. E tu foste directa, natural – não te pare­cia cus­tar nada –, amoral. No fim, dégueu­lasse e lírica como, mas menos cruel do que bon­jour… tristesse tanta, a maior tris­teza, de choro duro e histérico, o teu mel­hor filme amer­i­cano, sem des­cul­pas de história francesa ou de Verão de Riv­iera, foi Lilith. Tinha de ser um tipo de Nova Iorque, Robert Rossen, judeu, comu­nista, com uma sen­si­bil­i­dade de arco de vio­lino escon­dido num corpo de armário. Filmou-te tão bem. De fazer raiva. Esquizofrénica e linda. Nin­fo­maníaca e linda. Quer­e­mos ficar pre­sos no tumulto per­verso dos teus olhos, meter a boca na tua boca, mesmo sabendo que é de out­ras, mais bocas.

O que é que te acon­te­ceu depois? Já me con­taste os casa­men­tos infe­lizes, a tua pere­g­rina sim­pa­tia pelos Black Pan­ther, a morte da tua filha Nina, e o ciclo depres­sivo de 9 anos. Esqueceste-te de con­tar o resto, como é que, depois de teres nascido a 13 de Novem­bro no Iowa, 41 anos pas­sa­dos, em Paris, te sep­a­ras de céu e terra e te deix­aste deslum­brar pela noite escura de breu, sem sequer me deixares dizer-te, ao ouvido, que não quero, e ainda menos em Paris, que ninguém morra aos 41 anos de idade.

Jean_S

7 thoughts on “Carta fechadíssima a Jean Seberg”

  1. Ninguém quer, Manuel…

    E se for alguém com a tal beleza diferente, que não quer ser Diva, talvez a “Maria Rapaz” dos nossos sonhos de adolescentes (pelo cabelo curto e as roupas leves…), alguém que vai connosco a todo o lado, até aos figos.

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  2. Esqueceu-se do primeiro filme dela, Santa Joana do Otto Preminger, que a escolheu entre milhares de candidatas, por alguma razão, e onde ela tem uma boa interpretação da Joana D’Arc, Todavia, o seu filme favorito parece que era Lilith e o Seu Destino.

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  3. Tão linda e natural, parece até que nada a há-de atingir. O mal de vivre é que nos atingimos a nós mesmos.
    Mas ela leu, tenho certeza, só que no céu é tudo gasoso, nada de papel, tinta; que as nuvens não dão para fazer de mesa, são macias em demasia. e portanto, olhe, resposta factível é difícil.

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